A corrupção da linguagem: democracia e liberdade em tempos de fascismo

Foto: Nelson Almeida/AFP

Um dos traços definidores de nosso tempo é a confusão semântica, ou seja, uma crise nos significados de conceitos centrais na vida social e política das sociedades ocidentais. Uma das estratégias discursivas empregadas pela nova extrema-direita, que emergiu nas últimas décadas, é a de se apropriar dos conceitos nucleares do discurso político liberal e submetê-los a distorções e torções de sentidos, deslocando-os para o campo do fascismo e dando a eles significados muito particulares.

Nesse artigo vou tratar de dois conceitos nucleares no discurso político da modernidade ocidental, fundamentais para a construção da ordem política liberal e burguesa, sobretudo a partir do século XIX, e que, inclusive no discurso fascista assumido pelo bolsonarismo, no Brasil, ganham sentidos muito particulares: os conceitos de democracia e liberdade.

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O grande acontecimento político da semana que passou foi a leitura da “Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito!”, no Largo de São Francisco, na cidade de São Paulo, em frente as arcadas da centenária Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, replicada por todo o país em várias universidades e entidades da sociedade civil. Foi um fato relevante, entre outras coisas, por se tratar de um texto que tenta dar contornos mais claros ao significado da democracia e do Estado de Direito, fazendo parte de uma necessária batalha no campo discursivo e dos sentidos para confrontar as distorções que os discursos facistóides têm promovido nessa categoria.

O fascismo que é uma concepção totalitária e, portanto, antidemocrática, vem se utilizando do conceito de democracia para dar a ela uma definição ou para fazer dela uma concepção muito particular. Quando Jair Bolsonaro e seus seguidores abrem a boca para falarem da democracia, que defendem a democracia e, inclusive, a Constituição Federal, eles apresentam uma versão muito particular do que seria essa democracia, ou seja, para eles a democracia é o direito deles, os fascistas, de fazerem o que bem entenderem, sem os travamentos institucionais e constitucionais.

Em tempos de crise dos significados dos conceitos nucleares do discurso político moderno, que, talvez, de tanto serem usados e vilipendiados perderam a credibilidade e a legitimidade, se tornando uma espécie de mercadoria barata, de final de feira, que cada um cata e usa como bem lhe dá na telha, a democracia para os bolsonarista é a liberdade de expressão de todos os preconceitos, de todas as agressões, de todas as afrontas ao bom senso, à inteligência, é a livre manifestação do desejo de morte em relação aos adversários políticos que têm na conta de inimigos, é a explicitação da agressão e da violência como método de ação política.

A visão de democracia no discurso fascista é uma visão autoritária e, portanto, contrária a democracia. Não pode haver democracia sem respeito aos adversários, às ideias discordantes de todos os agrupamentos políticos. Não se pode nomear de democracia uma ordem política que aspira a ser monolítica, que aspira a expurgar e matar todos aqueles e aquelas que discordam, que confrontam, que se colocam contrários ao grupo que se quer hegemônico. É uma completa distorção do conceito de democracia pensá-la como um conjunto de artifícios, inclusive ilegais e extralegais, que permitam perpetuar um grupo político no poder.

A democracia não pode ser pensada como um instrumento para se conseguir, ao final, a sua própria destruição (a visão instrumental da democracia que por muito tempo uma boa parte da esquerda defendeu). Não se pode dizer-se democrata e querer matar quem pensa diferente, quem professa opiniões contrárias, tentando de toda forma impedir qualquer manifestação pública de dissenso.

Como sempre fez, a extrema-direita se utiliza da democracia para chegar ao poder e uma vez lá tenta destruí-la, pois não aceita a alternância de poder, nem respeita a divisão de poderes e o fato de que o Judiciário e o Legislativo têm como papel fiscalizar e limitar os poderes do Executivo.

É muito claro o desejo bolsonarista de se perpetuar no poder, nem que para isso tenham que golpear a democracia. Uma vez instalados no Estado, gozando de suas benesses (salários milionários, mordomias sem fim, poder de corromper e se locupletar) aqueles que lá chegaram pela via eleitoral passam a questionar o sistema que os levou ao poder, passam a nomear de democracia a intromissão das Forças Armadas em assuntos que não lhes são afeitos, que não são constitucionalmente definidos como do âmbito de sua atuação. Querer tutelar a sociedade, o Estado e outras instituições é ferir de morte a democracia que se baseia na divisão de poderes e competências e no sistema de pesos e contrapesos. Temos um candidato a ditador sempre que um governante não aceita que seus poderes tenham limites e deve obedecer a leis e regramentos.

A mesma corrupção semântica está ocorrendo com o conceito de liberdade (a extrema-direita corrompe até a linguagem). O presidente Jair Bolsonaro faz discursos inflamados em defesa da liberdade e chega a estimular seus seguidores que se armem para defendê-la. Mas qual o sentido muito particular dado ao conceito de liberdade no discurso bolsonarista: a liberdade só vale para eles fazerem o que quiserem, sem os limites das leis, das instituições e até sem o limite representado pela existência do outro. Essa noção de liberdade guarda em seu interior um desejo de eliminação e de extermínio de todo aquele que representa um limite, uma contestação ao poder desabrido a que ambicionam.

O fascista é por definição alguém que ama o poder, mesmo que não saiba o que fazer com ele e nem saiba colocá-lo a serviço de causas comuns. Ele ama o poder pelo poder, pela satisfação que ele dá as fantasias ególatras de domínio e de controle sobre tudo e sobre todos. Como o fascista tende a ser um medíocre, que não sabe o que fazer com o poder que ocupa, se aferra a ele pela compensação que ele representa para a sua baixa autoestima, por com ele se tornar alguém, coisa que nunca se sentiu antes.

A liberdade bolsonarista é a liberdade de atuação sem censura e sem lei, daí o permanente conflito com o Judiciário. Na fantasia fascista de um mundo em que os conflitos se decidem pela força bruta das armas, através da violência sanguinária, da agressão, da destruição moral do outro, não há lugar para o direito e para a justiça. O bolsonarismo é desconstrutor de qualquer institucionalidade, tem corrompido e conspurcado, achincalhado e debochado de todas as instituições (desde as mais comezinhas como prêmios e honrarias oficiais até o Congresso Nacional e seu orçamento secreto, que desconstruiu as finanças públicas) porque a institucionalidade é uma barreira limitadora da liberdade sonhada pelo candidato a déspota: a liberdade de ser dono da vida e da morte das pessoas.

O bolsonarismo não confia, nem acredita na soberania popular, a qual usou de modo instrumental para chegar ao aparelho de Estado, porque sonha com um soberano absoluto, a existência de um chefe de Estado que tem a liberdade de fazer o que bem entender, sem prestar contas a ninguém (daí a ojeriza aos meios de comunicação, aos mecanismos de transparência e controle da administração pública, daí os sigilos de cem anos para toda ação controversa que realiza). Conquistar a liberdade pelas armas (o que a esquerda também apostou muitas vezes) normalmente resulta na impossibilidade da liberdade.

O grupo armado vai gozar de maior liberdade, a liberdade, inclusive, de impor as suas vontades e ideias aos grupos desarmados, a liberdade, que qualquer sociedade que se quer civilizada não pode permitir, de tirar a vida do outro e permanecer impune, ou seja, uma sociedade em que o justiçamento ocupa o lugar da justiça (a lógica presente no universo dos fora da lei, dos milicianos, grupos de extermínio, traficantes, etc) . O delírio de poder bolsonarista passa pela liberdade de fazer com os adversários, vistos como inimigos, o que bem entender: prender, torturar, matar, violentar.

Quem defende a tortura e torturadores é porque acha admissível e justa que ela seja aplicada a quem pensa e age diferente do que pensa e deseja o candidato a algoz. A liberdade bolsonarista seria a possibilidade de eliminar a petralhada sem sofrer nenhuma punição legal, seria ter a liberdade de espancar, de ameaçar, de lançar bombas e venenos em seus adversários, sem que eles possam ter o amparo da justiça, da lei, do Estado de Direito!

O que se defende é a liberdade de cercear a liberdade do outro, é, no limite, impedir à força a existência do outro. O delírio narcisista de um mundo sem alteridade, sem um outro que sirva de limite, que sirva de barreira para a expansão indefinida de um ego que se quer sem peias ou censuras. A corrupção bolsonarista, não se fez apenas nos

Ministérios, na compra de vacinas, nas políticas educacionais, através da compra de apoio parlamentar com as emendas do relator do orçamento secreto, na compra de apoio em instituições religiosas e na imprensa, ela se espalhou para o plano dos discursos, para o campo da linguagem, com a corrosão semântica dos conceitos, com a total destruição da ideia de verdade, de realidade, através das mentiras recorrentemente contadas, oficialmente, das narrativas fantasiosas de verdadeiros mundos paralelos (o país ameaçado por um fantasma chamado comunismo, outro conceito completamente desvirtuado, usado para nomear qualquer coisa que não seja do agrado dos fascistas: do aborto as partes intimas da Anitta), das fake news elaboradas por profissionais do marketing e da propaganda, de objetos reais que fazem parte dessa irrealidade discursiva (como a mamadeira de piroca).

É preciso lembrar que essa corrupção semântica e até sintática da linguagem começou com a Operação Lava Jato (o conge não me deixa mentir) e seus aliados da grande mídia (com muitos jornalistas que escrevem e falam precária e bizarramente) que conseguiram transformar um golpe de Estado em um impeachment, com a participação decisiva e entusiasmada do Parlamento (que ao parlar desvirtuou a fala) e do Judiciário. Quando essa quadra triste e dramática de nossa história passar teremos que fazer, também, uma assepsia nas palavras, uma reconstrução da semântica de nosso vocabulário político, ampliando e ressignificando, inclusive, conceitos como o de democracia e liberdade para irem além dos sentidos dados a eles pelo discurso liberal. Agora nos cabe defendê-los do ataque prático e linguístico empreendido pelos fascistas.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.



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