No século XIX, o clima de triunfalismo em torno do conhecimento científico, que contava com amplo apoio da nova classe dirigente, a burguesia, que contou com ele para se contrapor ao discurso religioso, fonte principal de legitimação da antiga ordem social e do antigo regime político, com os quais a burguesia rompeu, fazia crer que a religião, como forma de explicação do mundo natural e social, estaria com seus dias contados. No ano de 1927, o pai da psicanálise, Sigmund Freud, chega a indagar sobre o futuro da ilusão que seria a verdade propagada pelos discursos religiosos, no livro O futuro de uma ilusão.
Nesse texto, Freud se propunha a explicar, através dos recursos da ciência da mente e do inconsciente, que estava desenvolvendo, as motivações subjetivas que levavam os homens e mulheres a se entregarem ao que seriam as ilusões criadas pelas distintas formas de culto ao sagrado, desde as suas manifestações mais recuadas no tempo. Nele, Freud apresentava as carências e vulnerabilidades humanas que levavam a necessidade da crença em divindades e entidades sobrenaturais e sobre-humanas, capazes de apaziguar as angústias existenciais e de fornecer o apoio e a segurança em dadas situações de sofrimento, de dor, de adoecimento e de morte.
O fato de os humanos serem mortais e terem consciência de sua finitude era uma das motivações básicas do sentimento de desamparo que os levavam a carecer de figuras extraterrestres que lhes fornecesse o socorro e o amparo nas horas de maior desespero, carência e vulnerabilidade.
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Não há dúvida que como um representante da visão triunfante da ciência, Freud colocava a própria psicanálise como um instrumento com que os humanos poderiam contar, a partir de sua obra e de sua prática, para se libertarem da dependência da ilusão religiosa, ao melhor compreenderem os mistérios e segredos que habitavam suas próprias subjetividades, suas mentes e suas almas. As religiões, para Freud, se sustentavam através da ignorância, do desconhecimento, da exploração dos mistérios e segredos da natureza e do comportamento humano e tenderiam a declinar como explicação das coisas do mundo à medida que a racionalidade científica fosse cada vez mais triunfando.
Decorrido quase um século da escritura dessa obra, o prognóstico freudiano parece ter falhado completamente. Assistimos, desde pelo menos os anos oitenta do século XX, não por mera coincidência desde que as utopias socialista e comunista ruíram (talvez pelo fato dos pensamentos utópicos serem substitutos do pensamento cristão e fruto de sua laicização, desde o século XVII), ocorreu uma profunda revivência do pensamento religioso, como forma de explicação da vida e das coisas do mundo natural e humano.
Os próprios cientistas e acadêmicos, que em dado momento, assim como Freud, se não se declaravam ateus ou descrentes, necessariamente faziam da religião um dado de sua vida privada, do foro íntimo de sua existência, separando-a da vida profissional, cada vez mais fazem alarde de suas convicções religiosas e tendem a embaralhar as fronteiras entre discurso científico e discurso de fé.
A laicização do espaço público, a separação entre poder político e poder religioso, entre o Estado e as instituições religiosas, entre o discurso político e o discurso religioso, a ponto de se pretender fundar uma ciência política, grande conquista das revoluções burguesas e dos discursos liberais e republicanos, sede espaço para uma progressiva invasão das instituições de Estado pelos interesses e instituições religiosas. Na verdade, sabemos que as instituições religiosas e seus agentes nunca deixaram de ser uma força política, ideológica e até econômica, na maioria das sociedades ocidentais, mas não cabe dúvida que vivemos uma mistura entre religião e política como não se via ao longo do século XX.
O crescimento da extrema-direita, tal como se deu nos anos iniciais do século XX (aí em grande parte como reação a laicização do espaço público e da vida pública promovidas pelas democracias liberais), vem apoiada por essa revivência religiosa e da extensão da lógica do discurso religioso, dogmático, para o campo da vida político-partidária. As verdades absolutas e dogmáticas das formas religiosas de pensar, não convivem bem com a vida democrática, em que se pressupõe a pluralidade de ideias e o direito de pensar e de se expressar de formas diferentes.
Creio, e essa ideia é que queria defender nesse artigo, que a própria forma como se organiza a ciência como instituição e como discurso tem uma grande responsabilidade pela crise do discurso científico, pelo anti-intelectualismo de nosso tempo, pelo negacionismo científico que graça em nossa época. A ciência é uma instituição que se organiza através do embate entre ideias, entre teorias, entre postulados, entre metodologias.
A ciência se organiza para fomentar o debate público, a publicidade de suas práticas, para permitir o avanço do conhecimento, o que implica sempre a superação e a substituição de conceitos, de práticas, de verdades que antes eram consensuais. O discurso da ciência parece ter contribuído para tornar ainda mais precárias as certezas que sustentavam e legitimavam a existência humana. A própria crítica aos saberes religiosos e sua explicitação como meras invenções humanas (como faz a antropologia, a etnografia, a ciência das religiões) amplia o desamparo e a vulnerabilidade humanos.
Ao tornar as verdades situacionais, circunstanciais, construtivas, ao mostrar a relatividade histórica e social de qualquer forma de conhecimento humano, inclusive do conhecimento do sagrado, a ciência ampliou o sentimento de desorientação e de precariedade em relação as explicações sobre as coisas da natureza e da vida social. Se a ciência se notabiliza por destronar seguidamente as teorias e conceitos que explicam a realidade, se os saberes científicos se notabilizam pelos embates internos, em que dados agentes e suas ideias são ditos superados ou errôneos, a ciência não consegue suprir as aspirações humanas por certezas.
A ciência moderna parece ter contribuído para a ampliação da própria insegurança e precariedade existencial dos humanos. Apoiado no dever da crítica, a ciência não deixou de solapar, permanentemente, os próprios alicerces que a sustentava.
Além disso, ao se fechar numa linguagem exotérica, na busca por construir uma forma própria de articular conceito e realidade, de articular a necessidade da prova, da experimentação e da evidência com a construção de uma linguagem que fosse capaz de expressar as descobertas científicas sem lançar mão dos conceitos e imagens do senso comum, do sentido comum, a ciência padece de uma dificuldade de comunicação com os estranhos a seu universo.
Como tenho discutido, em relação ao campo da história, os cientistas ficaram falando para si mesmos, para dentro dos muros de suas instituições, e abriram o flanco para que o discurso religioso fosse retomando um protagonismo que tinha perdido graças ao momento de militância antirreligiosa dos séculos XVIII e XIX.
No momento em que a burguesia e seus intelectuais precisaram enfrentar o discurso religioso para poderem conquistar a hegemonia ideológica, ele foi enfrentado de frente pelo discurso científico. No entanto, à medida que a burguesia se viu como classe dominante, paulatinamente, lançou mão das ideias e práticas religiosas para sustentar a sua dominação, abrindo uma avenida para que as ideias religiosas viessem a florescer, apesar e a margem da ciência.
E isso se deu porque os humanos continuam necessitando existencialmente de certezas, de verdades absolutas, da segurança de verdades eternas e universais, da previsibilidade e da explicação para todas as coisas do mundo e, acima de tudo, continuam precisando de amparo diante da morte, de ideias e verdades acerca do que seria o pós-morte. Continuamos com dificuldade de aceitar a finitude e, por isso, os discursos que falam da transcendência, de uma existência não finita, continuam gozando de audiência e prestígio.
Considero que a ciência, ao não se apoiar em dogmas, ou seja, ao não defender a existência de uma verdade, de uma palavra portadora da verdade, da explicação incontestável para tudo o que se passa na terra e com os humanos, se fragiliza diante do discurso religioso, que oferece uma palavra de verdade, uma palavra da qual não se pode discutir o sentido e o significado, que seria portadora de sentidos únicos e universais, fornecendo as certezas e a segurança existencial que tanto os humanos almejam.
A ciência se torna suspeita, se torna objeto de desafeição e desconfiança, a própria arrogância e pretensão de dadas formulações científicas, a pretensão da superioridade como discurso, a antipatiza socialmente e gera a reação anti-intelectual que estamos assistindo (recentemente tivemos o espetáculo de um colega historiador a desancar todas as versões alternativas da independência do Brasil, toda a vasta produção dos colegas acerca do evento e que não concordavam com a versão do palestrante; essa atitude fragiliza o discurso científico e favorece o negacionismo, à medida que vemos no campo religioso acontecer justamente o contrário, ou seja, o repisar e o repetir dos mesmos discursos, dos mesmos enunciados; esse entredevorar público dos cientistas, até com falta de respeito, como é o caso, abre o flanco para os recitadores de dogmas).
A ciência além de, na maioria dos casos, falar para si mesma, se perde, às vezes, em querelas bizantinas, enquanto os que falam em nome de Deus (o que já confere a eles enorme autoridade e legitimidade) formam grandes coalizões com claros objetivos de fazer as sociedades ocidentais (nas sociedades orientais ou africanas a religiosidade nunca deixou de ter centralidade) retroceder para antes do século XVII, talvez para a Idade Média. Um projeto que ameaça o que foi o chamado processo civilizatório burguês parece estar em andamento.
Se no final dos anos sessenta o padre, antropólogo e historiador francês Michel de Certeau diagnosticava a debilidade da crença religiosa, denunciando o que já se anunciava: a articulação entre religião e o mercado capitalista, com o religioso e a fé se tornando mais um item de consumo, hoje parece haver uma debilidade do crer na ciência, com o espalhamento de práticas e discursos supersticiosos e negacionistas.