Ataques aos nordestinos: letramento e analfabetismo político

As redes sociais se encheram de falas e textos depreciativos, racistas, inclusive com ameaças de morte e de extermínio aos habitantes da região

Foto: TSE

Como eu previra, em artigo que escrevi antes das eleições, os nordestinos seriam vítimas, mais uma vez, de agressões e injúrias, por causa do voto majoritário na candidatura de Luís Inácio Lula da Silva e em candidatos aos governos dos estados, situados mais à esquerda do espectro político. 

Como em eleições anteriores, quando os eleitores dos candidatos do PSDB, derrotados nas eleições, atacavam os nordestinos por votarem no Partido dos Trabalhadores, os seguidores de Jair Bolsonaro, que já se notabilizam pela retórica agressiva e pela violência verbal e física, não perdoariam o fato de que seu candidato foi fragorosamente derrotado em todos os estados do Nordeste. 

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As redes sociais se encheram de falas e textos depreciativos, racistas, inclusive com ameaças de morte e de extermínio aos habitantes da região.

Também não foi surpreendente ver o candidato derrotado no primeiro turno das eleições, demonstrar publicamente o desapreço pela e a visão preconceituosa que tem da população nordestina.

Mesmo que a tática eleitoral indicasse que, alguém que precisa diminuir a diferença com que perdeu na região para se viabilizar eleitoralmente no segundo turno, devesse, pelo menos, guardar para si o que realmente acha da população do Nordeste, Bolsonaro não se fez de rogado e assacou um dos preconceitos mais arraigados em relação aos nordestinos: o de que não sabem votar, porque são analfabetos, logo ignorantes, logo incapazes de ter consciência política, limitando-se a vender o voto, dada a precariedade da própria vida que levam. 

Para o presidente ameaçado de não se reeleger, ele teve os votos das áreas mais desenvolvidas economicamente do país, portanto, das populações mais letradas, logo mais inteligentes, logo com maior consciência política.

Essa maneira de pensar parte de vários pressupostos falsos e que se sustentam apenas no campo dos preconceitos, não resistindo à mais primária análise racional. Ela parte do pressuposto de que letramento e consciência política andam juntos, quando depende muito do tipo de educação, de formação que o individuo teve. Frequentar a escola não é garantia da superação da ignorância política. 

A depender do tipo de escola que se frequentou, ela pode ter sido acentuada e até propositadamente promovida. Ser formado por colégios elitizados, promotores de uma educação acrítica, veiculadores de preconceitos de classe, de raça, de gênero, não favorece a formação de sujeitos politicamente preparados. 

Ter acesso a uma educação que não discute os principais problemas do país, em que a própria educação é apresentada como um mero handicap para a conquista do sucesso no mercado de trabalho (a visão distorcida do que seja meritocracia), como mera preparação de capital humano para ser consumido pelas engrenagens do mundo capitalista, contribui para a formação de pessoas alienadas, que são incapazes, inclusive, de ter empatia em relação ao diferente de si, formando sujeitos individualistas, egóicos, sem a menor consciência coletiva e sem a menor noção de justiça social.

Como essas eleições estão deixando claro, pessoas letradas podem ser analfabetos políticos. O fato das pessoas com maior letramento no país, com acesso ao ensino superior, irem às urnas votar em um candidato que não demonstra o menor apreço pela democracia, pelas instituições, que não demonstrou nenhuma capacidade administrativa, que veicula ódio, preconceito, que faz apologia da tortura, do estupro e da violência, demonstra que ser letrado não significa, necessariamente, ser alguém com discernimento político e capaz de se situar adequadamente, inclusive, no campo dos valores. 

Essas eleições demonstram que os interesses econômicos e políticos e os preconceitos de cunho moral e religioso quase sempre se sobrepõem à formação letrada que se possa ter. Ser capaz de ler textos não é a mesma coisa que ser capaz de ler a realidade social e política. Até porque o papel aceita tudo e haverá textos ideologicamente distintos, que fazem leituras, muitas vezes, mentirosas e fantasiosas do mundo, como a realidade fake news em que muitos vivem, hoje, não deixa de reafirmar.

A região Nordeste possui uma tradição de lutas políticas capitaneadas por pessoas iletradas, por aqueles nomeados de analfabetos. As Ligas Camponesas, uma das principais formas de organização dos trabalhadores rurais, no período anterior ao golpe de 1964, eram formadas e dirigidas por homens e mulheres analfabetos ou de parco letramento.

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O sindicalismo rural e urbano, assim como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, na região, contou e conta com muitas lideranças, inclusive femininas, de formação escolar precária, o que não impediu que fizessem e façam uma leitura política sofisticada da realidade em que viviam e vivem. 

O método de alfabetização desenvolvido por Paulo Freire, um intelectual nascido na região, aliava pioneiramente o aprendizado das letras, a capacidade de ler palavras, ao aprendizado de se ler a realidade social e política, deixando claro que, aquilo que ele chamava de uma educação bancária, pode formar pessoas letradas mas ignorantes e obtusas do ponto de vista da leitura do que se passa a sua volta, notadamente quando se olha para o mundo com as lentes da ideologia dominante e do preconceito de classe, de gênero, de raça, de capacidade, de origem geográfica.

Os ataques proferidos, nesses dias, contra os nordestinos, já são em si mesmos, documentos de ignorância e de incompetência analítica. Podemos constatar a falta da menor lógica em alguns deles. Por exemplo, os nordestinos, vistos majoritariamente como pobres, teriam vendido os seus votos e depois iriam procurar emprego em outras regiões, quando estivessem passando fome. 

Essa pérola foi dita por um morador da região Centro-Oeste, região que votou majoritariamente no governante que promoveu o maior derrame de recursos públicos em época de eleições, que promoveu o maior estelionato eleitoral da história. 

Quem tentou comprar os votos dos nordestinos (e o pacote de benesses sociais de última hora foi claramente voltado para mudar a situação eleitoral do ocupante do Planalto nas regiões Norte e Nordeste) foi o presidente da República, o que parece não ter surtido o efeito esperado, daí sua revolta contra os “analfabetos” da região. 

Se formos acompanhar o argumento apresentado e usar da mais rasteira lógica, poderíamos afirmar que quem vendeu seus votos teriam sido os eleitores do Centro-Oeste ou do Sul, pois eles sim votaram, majoritariamente, no governante comprador de votos.

Além disso, demonstrando ter uma mentalidade de patrão, os empregos ofertados pelo agronegócio são apresentados como se fossem favores, em relação aos quais os nordestinos deveriam ser gratos, votando no candidato dos empregadores. O que se oculta nessa afirmação é que são os capitalistas do agro que lucram com a mão-de-obra barata vinda do Nordeste, pela qual pagam salários irrisórios, de onde retiram seus polpudos lucros. 

Se o governo que defendem não tivesse discriminado o Nordeste, o empobrecido com suas políticas, se os nordestinos encontrassem empregos em sua própria região, os empresários do agronegócio teriam que encontrar outra mão-de-obra, tendo para isso que, possivelmente, pagarem salários mais decentes.
 
É para manter os nordestinos na condição de mão-de-obra barata, de mão-de-obra desqualificada, justamente por não ter formação educacional, para que não ousem chegar as universidades e deixarem de ser trabalhadores braçais, que empresários do agro apoiam o governo que está desmontando todas as políticas públicas de educação e de inclusão social.

O que se tenta negar é que o voto dos nordestinos, em todas as últimas eleições, desde que o PT conquistou a presidência da República, estão dentro da mais absoluta racionalidade, quando não são demonstrações da mais profunda sabedoria política. 

Os eleitores das camadas populares do Nordeste (porque é bom deixar claro que os nordestinos também votam na direita e na extrema-direita, não existe esse nordestino homogêneo do discurso regionalista, do orgulho de ser nordestino do 8 de outubro) têm votado a partir do reconhecimento de que os governos petistas foram os que mais investiram na região e em que, pela primeira vez, o Estado chegou até eles, atendendo suas necessidades básicas: comida, água, luz elétrica, acesso a escola, a saúde e a assistência social. 

Os nordestinos pobres, que antes só tinham acesso a pequenas benesses do Estado em troca de seu voto, com as políticas públicas universais e despersonalizadas implantadas pelos governos petistas (o Bolsa Família era recebido no banco, com um cartão, sem precisar de intermediação de nenhum político, o aumento real das aposentadorias e dos salários era um direito e não uma benesse do patrão ou de algum vereador) passaram a ver concretamente sua vida melhorar.

Quem é de classe média ou rico (inclusive na região, onde muitos votos dessas camadas da população foram para Bolsonaro, o que faz o ataque genérico aos nordestinos ser uma burrice, inclusive, do ponto de vista eleitoral) não consegue entender o impacto na consciência de alguém, na vida das pessoas, o significado de se passar a ter luz elétrica em casa, notadamente no campo e nas pequenas cidades, passar a se ter uma cisterna, água limpa e perto de sua residência, passar a ter dinheiro para comprar carne, comprar iogurte, comprar um perfume e um desodorante.

Essas coisas pequenas, tão banais para uma pessoa de classe média, tem um significado transformador na vida das pessoas mais humildes. Ver seus filhos e netos se formarem doutores, quando nem passava pela cabeça isso ser possível, poder comprar uma vaquinha, uma cabra para ter leite todo dia para tomar, poder vender seus produtos ao programa de aquisição de alimentos saindo das mãos do atravessador, são conquistas que se quer preservar ou que se quer de volta ao se ir as urnas. 

As casas de taipa, realidade da moradia de muitos, desapareceu da região, o jumento foi trocado pela motocicleta, o ir a pé, por quilômetros, para uma escola precária, foi substituído pelos ônibus pretos e amarelos do programa Caminho da Escola. Quem não viu essas transformações concretas na paisagem da região? Só quem é cego por ideologia, interesses ou ignorância é capaz de atribuir o voto dos nordestinos a analfabetismo. 

Mais analfabeto político é quem assim se expressa. Porque a formação e a consciência políticas não nascem das nuvens etéreas dos discursos, mas das experiências concretas, da vida e das lutas cotidianas. Da vida nasce a sabedoria que, muitas vezes, se sobrepõe aos saberes adquiridos em bancos escolares reprodutores de desigualdades e privilégios, de visões de mundo individualistas e insolidárias.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.



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