Nordeste salva o Brasil de uma reeleição de Bolsonaro em primeiro turno
Há momentos que, para nós intelectuais, que temos a tarefa de tentar compreender os fenômenos sociais, se mostram muito difíceis e até dolorosos. Nós que não podemos quedar perplexos, que temos que buscar entender o que se passa a nossa volta, temos que vencer a surpresa e até a sensação de desorientação e desapontamento, para buscar racionalizar, pensar o que motiva os acontecimentos que estão diante de nós. E para começo de conversa temos que deixar nossas paixões de lado e encarar de frente os fatos ocorridos, mesmo sabendo que isso é completamente impossível. Mas um esforço analítico e um certo sentido de realidade devem presidir o que dizemos.
Temos que admitir que o bolsonarismo saiu vencedor e bastante fortalecido dessas eleições. Mesmo que Bolsonaro venha a perder as eleições no segundo turno, o bolsonarismo, as ideias e valores que ele encarna ou que são nele projetados, saem fortalecidos e com uma presença acachapante no Congresso Nacional, notadamente no Senado. Isso significa que o bolsonarismo, as ideias e valores de direita e de extrema-direita que ele encarna, tem uma grande audiência e aceitação em amplas camadas da sociedade brasileira, notadamente nas classes médias e entre os mais ricos.
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A agenda neoliberal na economia, as posturas conservadoras do ponto de vista moral e dos costumes, a visão religiosa do mundo, o machismo, o racismo, a misoginia, a homofobia, o combate a agenda dos direitos humanos, ao feminismo, a agenda ecológica, saem bastante fortalecidos não apenas pelos mais de cinquenta milhões de votos dados ao pior presidente de nossa história, em qualquer campo de análise, mais pela eleição de figuras emblemáticas das posturas de extrema-direita e que ocuparam cargos chaves no desastre administrativo e institucional que é o governo Bolsonaro.
Fomos ficando perplexos ao ver o general Mourão, um vice-presidente mais autoritário, se isso é possível, do que seu companheiro de chapa, de quem se afastou e que defende publicamente a ditadura e a tortura ser eleito senador por um dos estados que é considerado um dos mais politizados do país. Ao ver Damares Alves, que se destacou no governo por sua capacidade de criar fake news e pelo desmonte da agenda dos direitos humanos ser guindada ao Senado pelo Distrito Federal. E o que dizer do astronauta Marcos Pontes, ministro responsável pelo desmonte da ciência e tecnologia no país, eleito senador por São Paulo, com mais de cinquenta por cento dos votos válidos. Poderá haver maior motivo de perplexidade do que o Rio de Janeiro eleger o general Eduardo Pazzuelo, aquele que foi o responsável pela péssima gestão da pandemia, pela falta de oxigênio em
Manaus, que foi acusado na CPI da Covid de comandar um esquema de cobrança de propina na compra de vacinas, como um dos deputados federais mais votados? Além das votações consagradoras das bolsonaristas raiz, responsáveis por muitas mentiras e escândalos como Carla Zambelli e Bia Kicis, e do próprio Eduardo Bolsonaro.
Mesmo no Nordeste, onde Lula teve uma votação consagradora, atingindo os índices previstos nas pesquisas eleitorais, Bolsonaro teve mais votos do que as previsões indicavam. No Sudeste, com a exceção de Minas Gerais, onde mesmo assim a diferença pró-Lula foi muito menor do que os institutos de pesquisa apontavam, Bolsonaro venceu nos outros três estados e com maiorias muito acima do que indicavam as mais tradicionais pesquisas de intenção de votos, o mesmo ocorrendo no Rio Grande do Sul. Bolsonaro venceu em doze estados e no Distrito Federal e Lula em quatorze estados, mostrando um país claramente dividido, entre suas partes norte e sul. Se não fosse a imensa diferença conquistada no Nordeste, notadamente na Bahia, quarto maior colégio eleitoral do país, o Brasil poderia ter ido dormir ontem (quem conseguisse evidentemente) com Bolsonaro reeleito em primeiro turno, com o aval social necessário para atacar e destruir de vez a as instituições democráticas no país.
Podemos nesse momento, sob o impacto ainda do ocorrido levantar o que seriam meras hipóteses iniciais para explicar o que aconteceu. Quem compareceu a votação ontem se surpreendeu com a afluência de pessoas para votar, notadamente das pessoas de classe médias e dos extratos mais privilegiados da população: homens, brancos, ricos, idosos, muitos desfilando suas indumentárias verde e amarelo. Esses setores da população se mobilizaram, claramente, para tentar impedir uma vitória de Lula, ainda no primeiro turno. A abstenção deve ter sido maior, como sempre, entre as camadas populares, que têm até dificuldades financeiras para se locomoverem e que eram na sua maioria eleitores de Lula. Embora a polarização também tenha mobilizado intensamente os setores mais de centro-esquerda no país, o resultado das pesquisas eleitorais, indicando uma possível vitória de Lula, ainda nesse domingo, pode ter levado muitos eleitores do candidato do PT, que teriam que fazer um sacrifício pessoal para ir votar, ter ficado em casa, na certeza de que seu voto não faria falta. Eu mesmo ouvi dois relatos de trabalhadores que teriam que se deslocar para cidades do interior para votar, dizendo que como Lula já estava eleito eles preferiam ficar trabalhando no final de semana, ganhando o dinheiro que poderiam perder.
A expectativa era que o resultado das pesquisas desmobilizasse e desanimasse os eleitores de Bolsonaro, o que não aconteceu, pois ele e sua campanha foram eficazes em pôr em dúvida e até mesmo hostilizarem os institutos de pesquisa. Como é costumeiro, os bolsonaristas se mobilizam e se juntam na crença de que são perseguidos e discriminados. Dois públicos que compõem, majoritariamente, a base bolsonarista há muito alimentam essa ideia de que são malvistos e até perseguidos pelos setores de esquerda, pelos intelectuais, pelos formadores de opinião como a imprensa e os institutos de pesquisa a ela ligados: os evangélicos e os militares. O fenômeno do voto evangélico, de sua atuação no mundo da política regidos pela gramática religiosa, pelas paixões e afetos reativos, por valores e ideias bastante conservadores deve ser motivo de reflexão e de mudança na forma de acessar e se dirigir a esse público. Ao dizer que teria cerca de sessenta por cento dos votos no primeiro turno ele conseguiu mobilizar sua base de apoio, levando as pessoas a comparecerem em massa justamente para demonstrarem a parcialidade desses institutos. E, sem dúvida, temos que admitir que a imagem desses institutos sai bastante malparada, pois erraram praticamente tudo, em quase todo lugar.
Talvez, o insucesso dessas instituições se devam as metodologias empregadas, mas creio que há um outro motivo para que todos tenham errado, sobretudo em relação aos votos bolsonaristas: o caráter envergonhado de uma boa parte do voto no presidente, o caráter silencioso de um eleitor despolitizado, que não quer, nem se acha capaz de discutir e argumentar racionalmente com alguém sobre seu voto e prefere não se expor, não discutir, notadamente com gente da esquerda, que consideram fanáticos e agressivos (por incrível que pareça é essa imagem do comunista estereotipado vendido pelo discurso do ódio e do medo). Esse voto é muito mais um voto dado por reação emocional e até inconsciente, do que por motivos racionais. Que motivo racional pode haver para um motoqueiro que entrega encomendas de fastfoods colocar uma bandeirinha verde-amarela em sua moto, justo ele que é vítima das políticas neoliberais de precarização do trabalho, como ele vai explicar seu voto, se ele se dá por identificações psicológicas e afetivas com o mito, ou por razões morais, por preconceitos ou por desinformação. Ele não só prefere calar sobre seu voto, como diria que vai votar em branco ou nulo, que vai se abster ou votar num candidato nanico, se fosse abordado por um instituto de pesquisa. Como poderíamos acreditar nas cifras de votos atribuídas a Bolsonaro se alguns de seus eleitores chegaram a agredir pesquisadores dos institutos mais conhecidos.
Muitos votos em Bolsonaro é um voto envergonhado, secreto mesmo, porque é um voto egoísta, é um voto pensando apenas em si mesmo e em seus interesses, não importando o país ou os semelhantes. Muitos eleitores de Bolsonaro sabem muito bem quem ele é, e não é de agora, sabem que ele foi um desastre, mas seu governo não apenas os favoreceu, mas o mais importante, desfavoreceu aqueles que muitos acham que devem mesmo ser desfavorecidos, até perseguidos: os indígenas, os pretos, os nordestinos, as mulheres emancipadas e modernas, as pessoas que professam outras religiões, os comunistas e esquerdistas, os homossexuais, os sindicatos, os sem-terra. Esse é um voto reativo, de mera negação do direito do outro, até de existir, e por isso a não publicidade dele. O voto de Bolsonaro é majoritariamente de classe média, por isso venceu nos estados onde esse extrato social é muito relevante e perdeu onde esse setor é menos expressivo, como no Nordeste. A classe média costuma ter pavor da ascensão social dos mais pobres. Creio que a insistência de Lula em fazer um discurso voltado para os pobres, se identificando claramente, em muitos momentos, como um deles gera hostilidade e rejeição nos setores médios e ricos, que não querem aeroporto virando rodoviária, que não querem perder seus símbolos de distinção e privilégio (ter um carro, poder viajar, poder fazer um churrasco de final de semana, poder frequentar universidades). Lula vive prometendo que os pobres terão o mesmo que essas pessoas e elas não querem isso, mas não fica bem dizer, não é coisa que se defenda em público. Os ricos não querem pagar impostos e não querem os pobres no orçamento, não querem pagar salários, por isso temem a reforma da reforma trabalhista. O Centrão, grande vencedor das eleições legislativas, não quer o fim do orçamento secreto, nem parar a negociata das privatizações, nem pobres empoderados com políticas sociais. Por isso, não apenas tivemos um primeiro turno difícil, como teremos um segundo turno ainda mais tenso. A luta de classes e a luta entre regiões novamente estão escancaradas, à luz do dia para quem quiser ver, embora possa se passar também na surdina do voto silencioso, no voto que teima em não dizer seu nome.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.