Nordeste, rincões e grotões

Uma das muitas pérolas proferidas pelo presidente, candidato à reeleição, é que os votos de seu principal oponente vêm dos rincões e dos grotões do país. Esses termos sempre são utilizados em períodos eleitorais para desqualificar e menosprezar os votos das pessoas que vivem nas zonas rurais, nas áreas mais afastadas do litoral ou não regiões vistas como periféricas do país.

O candidato que tem grande número de seus eleitores vivendo nas áreas de prevalência do agronegócio das regiões Centro-Oeste e Sul, que vence as eleições nos antigos territórios federais (Acre, Rondônia e Roraima), que não são propriamente áreas centrais no território nacional, resolveu demonstrar seu preconceito em relação àqueles que não vivem nas grandes cidades do país, nas áreas litorâneas ou nas regiões mais desenvolvidas do país.

Como o seu principal adversário, o líder de todas as pesquisas respeitáveis de intenção de votos, tem a maior vantagem em percentuais de votantes na região Nordeste, é de se supor que essa área do país faz parte dos rincões e dos grotões a que se refere o desesperado mandatário nacional. Não é a primeira vez que esses termos são usados para desqualificar o voto dos nordestinos, notadamente daqueles que vivem no interior e em pequenas cidades. Grande parte do interior do Nordeste localiza-se na microrregião do sertão, embora no caso do estado do Ceará possamos dizer que o sertão chega até o litoral.

É muito presente no imaginário nacional a associação entre o sertão e a ideia de interior profundo, de área distante do litoral, terras atrasadas econômica e politicamente, verdadeiros cafundós do Judas. Os sertões seriam lugares estacionados no passado, vivendo num tempo anacrônico, anteriores ao tempo presente, ao tempo da modernidade e da modernização. Como o ex-presidente nordestino é imbatível nos municípios sertanejos, alcançando votações que podem passar dos setenta por cento dos votos, sua eleição, se ocorrer, teria menos valor, seria fruto do que se considera ser a ignorância dos habitantes dos rincões e dos grotões nordestinos.

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O presidente que tem a preferência dos ricões, menospreza os rincões por preconceito contra a sua população, contra as gentes do interior e do sertão, notadamente pelo que seria sua pobreza, ignorância e incapacidade de discernimento. Ele mesmo, um caipira do interior paulista, que carrega em sua fala o sotaque interiorano, que em muitas ocasiões quis aparecer como um homem simples, até mesmo rústico, que é um homem rude, o mito de muitos cantores sertanejos, resolveu demonstrar todo o seu preconceito contra as pessoas mais humildes, contra as pessoas que vivem nas áreas mais afastadas do país.

O candidato das gentes dos carrões, das caminhonetes embandeiradas, das motos e jet skis, considera que os votos dos mais pobres e das pessoas que vivem no interior do país têm menos valor e menor importância.

Realisticamente falando, tal declaração se trata de um sincericídio, pois as pessoas dos rincões e dos grotões compõem a maior parte do eleitorado brasileiro e seus votos têm tanto valor, são tão decisivos quanto os dos moradores da Barra da Tijuca, de Maresias ou de Balneário Camboriú. Não existem eleitores de primeira ou de segunda categoria, aqui a lógica hierárquica e a visão meritocrática neoliberal não têm vez.

É muito difícil para aqueles que estão acostumados a ver o mundo e a sociedade a partir da lógica das distinções e dos privilégios lidar com a democracia participativa, com o fato de que no dia da eleição o voto de cada eleitor tem o mesmo valor, que o voto do mais humilde dos homens, da mais interiorana das mulheres, conta tanto quanto os votos das pretensas elites econômicas ou intelectuais. A recusa a aceitar o veredicto eleitoral, as constantes ameaças ao processo democrático, o golpismo dele e de seus seguidores nascem, no fundo, do fato de que se consideram uma casta ou uma elite escolhida, inclusive por Deus, que não merecem ou não aceitam se submeter a decisão da maioria composta por pessoas que desprezam, que vêm como inferiores, como subalternas, até como diabólicas ou perigosas.

O presidente-candidato, numa fala da tribuna da Câmara dos Deputados, já expressou o que ele pensa dos mais pobres: eles só teriam valor no dia da eleição, com o título de eleitor na mão e o diploma de burro no bolso. Essa frase sintetiza bem como o candidato e a coordenação de sua campanha, composta de pessoas que pensam como ele, acharam que podiam conquistar o voto dessa gentinha dos rincões e dos grotões, sem os quais ninguém chega a presidência da República, já que eles constituem cerca de 54% do eleitorado nacional: comprando os seus votos, realizando o maior derramamento de dinheiro público que já se viu num processo eleitoral, o maior estelionato eleitoral de nossa história, assistido passivamente pela justiça eleitoral.

Esse povinho burro, essa gentinha pobre, essa negrada, venderia o seu voto à troco do pagamento de um auxílio emergencial de R$ 600,00 reais, durante um semestre, para depois, passado o processo eleitoral, serem jogados, novamente, na mais absoluta miséria, onde mereceriam estar, justamente, por serem ignorantes e não saberem aproveitar o único momento que possuem serventia. Aliás, isso é tão forte no imaginário nacional, que o eleitor após votar diz que perdeu o seu valor e, muitos, efetivamente aproveitam esse momento para conseguirem o mínimo benefício possível.

Sua fala sobre os rincões e os grotões, apenas vem se somar às suas falas preconceituosas em relação aos paraíbas. No início do seu governo, orientou seus ministros a não enviarem recursos para os “governadores paraíbas”, mesmo que isso significasse prejudicar toda a população da região, que agora o repudia. O curioso é que entre os ministros presentes à reunião estavam alguns políticos “paraíbas”, que permaneceram calados diante da fala injuriosa. O maior exemplo de que ele e quem faz sua propaganda eleitoral consideram os nordestinos uns néscios, uns desmemoriados, é a pretensão de atribuir a seu governo a realização das obras de transposição do Rio São Francisco, quando as atrasou, quase paralisou, realizando pouco mais de três por cento delas.

A visão de que os pobres, os moradores dos sertões não possuem racionalidade na hora de dar o seu voto, que podem ser facilmente manipulados, enganados, comprados, que a esperteza e a inteligência é um monopólio dos moradores das grandes cidades e dos bairros de classe média alta, onde tremulam bandeirinhas nacionais em cada janela, parece ter ido por água à baixo.

Talvez o mais assustador seja a adesão de parte das pretensas elites e, inclusive, da maioria daqueles que portam um diploma de curso superior à candidatura de um dos mais despreparados dos candidatos. É merecedor de profunda reflexão, ao sairmos dessa quadra da vida do país, o como e por que o atual presidente, com todas as suas limitações cognitivas e de expressão verbal, com sua admitida incompetência para falar sobre e gerir quase tudo, continua merecendo o voto de algumas das áreas consideradas mais desenvolvidas do país e dos setores da população que se consideram superiores e que foram privilegiados com o acesso à educação, tendo frequentado as consideradas melhores instituições de ensino, do país, seja no ensino básico, médio, seja no ensino superior. O elitismo, o preconceito de classe, o racismo, a misoginia, parece explicar por que, surpreendentemente, as pretensas elites do país, aqueles que olham com desprezo para os moradores dos rincões e dos grotões, parecem, em muitos momentos e em muitas atitudes, serem mais “selvagens”, mais “bárbaros”, mais xucros, que aqueles que constituem a ampla base da pirâmide demográfica brasileira.

Mais uma vez, passado o processo eleitoral, se o resultado confirmar o que dizem as pesquisas eleitorais, o Nordeste e os nordestinos serão alvo de muito preconceito, de agressões, de injúrias, de ameaças de violência. Mais uma vez, mesmo que a região tenha, hoje, cerca de setenta por cento de sua população vivendo em cidades e tenha três das maiores metrópoles do país, seremos acusados de sermos uns grotões de atraso e de burrice. Creio que nos arrependeremos, amargamente, do dia em que o cantor tido como a encarnação da nordestinidade disse que o jumento é nosso irmão.

A violência verbal dos derrotados (e esperamos que fique só na violência verbal) mais uma vez vai nos atribuir a pecha de gente pobre, feia, ignorante, que infelicita a nação, que vota com o bucho e não com a cabeça, nos aconselhando a não mais migrar para as terras fartas e de gente inteligente, como as deles, mas agora pegarmos um pau-de-arara e rumarmos para Cuba ou para a Venezuela, mesmo que nos afoguemos na travessia do oceano. Imaginar que possamos migrar utilizando aviões, nem pensar. Esse não é veículo para gente que mora nos rincões e nos grotões, é só para a gente fina da Faria Lima ou da Vieira Souto, aquela disposta a cair, literalmente, de paraquedas sobre os prédios das grandes cidades, em demonstração de devoção ao mito.

Talvez esse país seja salvo do fascismo e da destruição completa pela inteligência, a resiliência e a esperteza dessa gente silenciosa e anônima que habita os grotões e os rincões do país, talvez de lá venha o grito dos excluídos, afirmando sua força e sua existência, sem carrões e sem bandeirolas tremulantes, com a humildade e a decência, a honradez e a esperança dessa gente humilde, que sempre sustentou nas costas, nos braços e nas pernas esse país, que os desconhece e os menospreza. No dia 02 de outubro talvez os rincões e os grotões mostrem o seu valor.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.

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