A guerra: a consequência extrema da lógica da identidade

Legenda: Conflito entre Rússia e Ucrânia duram dias
Foto: ARIS MESSINIS / AFP

O mundo inteiro assiste com preocupação a guerra entre Rússia e Ucrânia. Até porque é uma guerra que se passa na Europa, que envolve, majoritariamente, pessoas brancas, que atinge, portanto, aquelas vidas e aquelas nações que importam. Sabemos que, nesse momento, muitos outros conflitos ocorrem no mundo, notadamente no continente africano, mas para a mídia internacional, aos olhos do Ocidente, as vidas que ali vivem e mesmo o espaço africano pouco importam.

Vemos como os mesmos países europeus que se negaram a receber os refugiados na guerra da Síria, abrem suas fronteiras para os refugiados ucranianos. Enquanto aqueles eram encurralados por cercas de arame farpado, apanhavam de policiais e forças de segurança, até mesmo recebiam rasteiras de repórteres, os ucranianos estão sendo recebidos com comidas, cobertores e saquinhos de balas e chocolates para as crianças.

Uma guerra que, mais uma vez, mostra o grande perigo da lógica da identidade, da exacerbação e exploração das identidades nacionais e regionais. O nacionalismo leva a intolerância e ao exclusivismo, leva a hostilidade em relação a outras nacionalidades. A lógica da identidade opera através da essencialização do ser nacional, opera através da construção simbólica e imaginária da alteridade radical do outro, da exclusão do diferente, da intolerância com o estranho e o estrangeiro. A identidade tende ao fechamento para a recepção do estranho, daquilo que ameaçaria a pretensa continuidade desse ser idêntico.

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A identidade dificulta a relação, a mistura, a convivência de diferentes, pois pensa toda relação como sendo de exclusão, toda mistura como perigo e ameaça, vivendo do delírio da pureza e da autenticidade, toma toda convivência de estranhos como ameaça e perigo de contaminação, de descaracterização, de perda do que seria sua essência, seu ser mesmo. Toda identidade opera com a lógica do traçado de fronteiras rígidas, fixas, as quais não devem ser atravessadas, pois sempre seriam vistas tais travessias como invasão.

Na guerra da Ucrânia vários nacionalismos chauvinistas e xenófobos se encontram, aliados a visões expansionistas, imperialistas, colonialistas, racistas, o que de pior a política moderna das identidades produziu. De um lado temos o governo ucraniano capitaneado por Volodymyr Zelensky, ator, roteirista, diretor cinematográfico, comediante, que foi eleito presidente do país, em 2019, surfando na onda da antipolítica, explorando o nacionalismo ucraniano, prometendo uma aproximação com o Ocidente e o fim dos conflitos na região de Donbass, no sudoeste do país, onde grupos separatistas pró-Rússia, desde 2014 se enfrentam com as forças armadas do país e milícias nacionalistas ucranianas, entre elas o chamado Batalhão de Azov, um grupo assumidamente neonazista, que faz parte da Guarda Nacional do país.

É preciso lembrar que o nazismo tem uma presença histórica na Ucrânia e que o conflito e o ressentimento entre russos e ucranianos tem raízes históricas profundas. Na Segunda Guerra Mundial os ucranianos colaboraram com a invasão das tropas alemãs ao território da União Soviética. No campo de extermínio de Treblinka, na Polônia, toda a guarda do campo era composta de ucranianos (na Eurocopa de 2012, realizada para reaproximar os ucranianos dos poloneses, ficaram famosas as cenas sangrentas protagonizadas pelas torcidas da Ucrânia, da Polônia e da Rússia, que se enfrentaram em batalhas campais pelas ruas das cidades dos dois países, da qual participaram os grupos neonazistas).

O racismo é uma marca da sociedade ucraniana. Ainda esses dias vimos como imigrantes africanos e árabes eram impedidos de entrarem nos trens em que a população de Kiev tentava deixar a cidade, privilegiando os nascidos no país e os brancos. O presidente comediante fez uma campanha eleitoral muito parecida com a de Jair Bolsonaro, inclusive criando uma peça de propaganda em que aparecia metralhando e matando todos os membros do Parlamento ucraniano.

Do outro lado temos o governo autocrático e ditatorial de Vladimir Putin, que só nesses dias que levamos de conflito já prendeu mais de quatro mil pessoas que se manifestaram contra a guerra. O ex-chefe da KGB, a terrível polícia política soviética, tem se perpetuado no poder através de sucessivas mudanças constitucionais, da repressão a e até do assassinato de opositores, da manipulação da opinião pública através do controle dos meios de comunicação e da censura até das redes sociais, além de uma azeitada máquina para produção de fake news e realização de ciberataques (o que parece ser o motivo da visita de Bolsonaro ao país e sua surpreendente posição de apoio a Putin em meio a guerra, fazendo do Brasil um caso isolado no Ocidente).

A invasão da Ucrânia obedece, por um lado, a motivos estratégicos: a Rússia quer evitar a entrada da Ucrânia na União Europeia e na OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte, uma organização militar que reúne trinta países ocidentais para fim de defesa comum), tentando preservar uma das únicas fronteiras com a Europa Ocidental que ainda não é militarizada por essa aliança de países hostis a Rússia e, em grande medida, aliados e sob a influência dos EUA. Mas, por outro, obedece ao histórico desejo imperial russo, a um delírio de retorno ao que foi a União Soviética e a grande Rússia czarista, já que desde os séculos VIII e IX que Kiev se torna um posto avançado do Império do Cazar e desde o século X se tornou o núcleo da política da Rússia. O nacionalismo ucraniano se conflita

com o nacionalismo russo e suas pretensões expansionistas ou, pelo menos, seu intento de manter as ex-repúblicas soviéticas sob seu controle político e, por extensão, econômico, constituindo um cinturão estratégico de segurança em relação as forças ocidentais e da OTAN. Uma boa parte dos ucranianos falam russo, têm ascendência russa e muitos se identificam com a antiga pátria, pois a Ucrânia fez parte da URRS até 1991.

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Há uma clara divisão entre os ucranianos do leste e os ucranianos do oeste, com os primeiros se identificando mais com o Ocidente e os segundo mais com a Rússia, daí a guerra civil ucraniana que já durava mais de sete anos, sem que ninguém na Europa ou no mundo prestasse atenção. Fontes russas afirmam que nesse período morreram mais de 13 mil pessoas, no embate entre as tropas de Kiev e os separatistas pró-Rússia.

Amedrontada por uma guerra no interior de suas fronteiras, uma Europa sem líderes políticos capazes de lidar com a situação, novamente alinhados cegamente com os ditames dos Estados Unidos, toma atitudes impensadas e perigosas como a de usar o fundo para manutenção da paz da União Europeia para comprar e enviar armas para a Ucrânia, (dois absurdos: usar um fundo para manutenção da paz para fazer a guerra e armar um país que sequer faz parte da União Europeia).

Isso demonstra como as nações da Europa têm dificuldade de pensar a Rússia como parte desse continente, como a sombra da Guerra Fria não foi superada, como o preconceito e hostilidade em relação a Rússia, como a propaganda anti-russa, vinda principalmente dos Estados Unidos, conformam e configuram a relação da maior parte dos países do continente com os russos.

Mesmo dependendo energeticamente da Rússia, mesmo dependendo do abastecimento russo em vários produtos, a União Europeia nunca conseguiu estabelecer relações que não sejam perpassadas pelo preconceito e pela desconfiança em relação a grande potência nuclear da região. A Europa se torna a correia de transmissão do imperialismo americano, até porque a maior parte de seus países vêm de experiências imperiais e coloniais e não deixam de exercitar, periodicamente, práticas de intervenção imperialista (a França e a Itália na derrubada do governo da Líbia, por exemplo).

Os Estados Unidos, um império decadente, que por isso mesmo se torna muito perigoso, tenta impedir a emergência de uma ordem mundial multipolar. A aproximação entre China e Rússia, que teve seu ato mais expressivo numa reunião que se realizou vinte dias antes que Putin ordenasse a invasão da Ucrânia, amedronta os americanos, assim como a criação dos Brics, que fez os Estados Unidos promoverem, inclusive, o golpe de Estado, no Brasil, em 2016. Os Estados Unidos, através da OTAN vêm cercando a Rússia com países aliados e armados “de forma preventiva”.

É esse acosso que serve de principal justificativa para a guerra da Rússia contra a Ucrânia, já que ela seria a próxima fronteira russa a ser assediada por armas e tropas da OTAN. Os EUA, um país que já invadiu vários países, que nunca foi penalizado pelo hediondo crime de guerra cometido no Japão, que mentiu e inventou pretextos para se apossar militarmente das riquezas e reservas de petróleo de outros países, tem a coragem de, hipocritamente, propor a condenação da Rússia pela invasão da Ucrânia.

A invasão russa é um ato condenável, toda guerra é uma derrota para a humanidade e sua capacidade de se relacionar, de superar a lógica da identidade e assumir a lógica da diferença, da diversidade, da multiplicidade, da abertura para o outro em sua estranheza e estrangeirice. Mas se tem um país que não tem nenhuma base moral para fazer esse repúdio é os EUA, que vive de promover a guerra, com fins econômicos (a indústria bélica americana é responsável por quase 10% do PIB) e com finalidade política, explorando um nacionalismo exacerbado, que coloca os americanos como seres superiores a todos os outros no mundo, alimentando a xenofobia e o preconceito em relação aos não-americanos, inclusive no interior do próprio país. Esse nacionalismo se soma ao racismo e se torna movimento supremacista branco.

Não é preciso dizer que os russos são eslavos, não propriamente vistos como brancos. Os nazistas, inclusive os nazistas ucranianos, vêm os eslavos como raça inferior. Portanto a guerra que invade nossas televisões, todos os dias, é um coquetel do que há de pior no mundo da política, dos valores e das ideias, tudo a serviço de um capitalismo global que quer excluir a Rússia, que vê nas sanções econômicas a possibilidade de conseguir nacos de mercado para as combalidas empresas americanas e europeias (os EUA move uma guerra surda para destruir empresas que concorram com as suas, vide a Lava Jato e a destruição da Petrobras e das empreiteiras que faziam sombra as empresas norte-americanas).

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.