Por que os nordestinos são alvo do neonazismo à brasileira?

Legenda: Protesto contra neonazistas na Alemanha
Foto: AFP

Especialistas em estudos sobre as ideologias de extrema-direita, como a antropóloga, Adriana Dias, têm alertado para o crescimento do movimento neonazista, no Brasil, durante o governo de Jair Bolsonaro. Em recentes reportagens, tanto o programa dominical da Rede Globo de Televisão, Fantástico, quanto a revista Brasil de Fato, chamaram atenção para esse fenômeno. As redes sociais teriam permitido não só o crescimento dos grupos extremistas, a comunicação entre eles, como a disseminação de novos grupos por todo o país.

Concentrados nos estados da região Sul do país, notadamente nos estados do Paraná e Santa Catarina, os neonazistas constituiriam, hoje, cerca de 530 núcleos, com a participação de cerca de dez mil pessoas. Eles teriam presença acentuada nas grandes cidades do estado do Paraná, onde constituem núcleos de maior dimensão, e em todo o estado de Santa Catarina, onde estariam dispersos, inclusive, por pequenos municípios e em pequenos núcleos.

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O nazismo surgiu nos anos vinte, do século passado, na Alemanha, como uma das respostas ideológicas às crises econômica e política vivida por esse país, após a derrota da na Primeira Guerra Mundial, sobretudo mobilizando o ressentimento do povo alemão diante das condições humilhantes impostas ao país pelo Tratado de Versalhes, que pôs fim à guerra.

Defendia um Estado forte, interventor na economia capitalista, um Estado que rompesse com a democracia liberal burguesa e fosse regido por um regime autoritário. Mobilizando o imaginário da revolução, muito presente após a vitória dos bolcheviques na Rússia, o nazismo propunha uma revolução conservadora, para se contrapor ao avanço do comunismo, restaurando os valores ocidentais e cristãos (qualquer semelhança com discursos do Brasil atual não é mera coincidência). 

Mas o traço marcante do nazismo, coerente com formulações ditas científicas do momento, era o racismo, o uso da noção de raça, inventado pelo discurso colonial, no século XVIII, para estabelecer hierarquias entre os povos e os indivíduos, propondo a discriminação e, paulatinamente, a eliminação física das raças inferiores e indesejáveis. 

O antissemitismo, o preconceito contra a presença destacada da população judia, em setores como o comércio e as finanças, foi um dos temas mobilizadores da propaganda nazista, que conduziu a proposta de exclusão dos judeus da vida social, com a criação de guetos e a posterior “solução final para a problema judaico”, a morte de mais de seis milhões de judeus em campos de extermínio, onde eram executados em câmaras de gás, enterrados em valas comuns ou incinerados em fornos crematórios e em campos de concentração, obrigados ao trabalho forçado, precariamente alimentados e submetidos a toda sorte de abusos e violências.

O neonazismo surge depois da derrocada do regime hitlerista na Segunda Guerra Mundial. Sem conseguir, ainda, ter chegado ao poder de Estado, tal como ocorreu com o Partido Nazista, nas eleições de 1933, ele é um movimento que se destaca pela divulgação e circulação de ideias ligadas ao ideário nazifascista, pela disseminação de slogans, figuras de linguagem, símbolos ligados ao nazismo. 

De caráter clandestino, pois fazer apologia ao nazismo é crime previsto na legislação brasileira, eles apostam na propaganda e na doutrinação, na perseguição e na violência física e simbólica, contra os seus adversários, como fez o regime que eles admiram. São negacionistas, propalando que o Holocausto não teria ocorrido e não passaria de propaganda judaica. 

No Brasil, um dos traços marcantes do neonazismo é o preconceito contra e o ataque aos nordestinos, chegando à violência física. Mas, por que os nordestinos seriam alvo dos discursos e práticas de ódio dos neonazistas brasileiros? O que faz dos nordestinos um dos bodes expiatórios do discurso neonazista brasileiro, uma espécie de judeu de nosso país?

Assim como os judeus, os nordestinos são vítimas da visão racista presente nos discursos nazista e neonazista. Esses discursos operam com a categoria de raça, que permitiu que o colonialismo e imperialismo europeu se justificasse e se legitimasse. Os nordestinos seriam inferiores racialmente por serem, predominantemente, mestiços, por não serem brancos, como se consideram os militantes da causa neonazista (embora existam até negros neonazistas, que devem guardar um profundo ódio contra sua própria cor e contra si mesmos). 

No Sul do país, onde se concentra boa parte dos núcleos neonazistas, o discurso da origem europeia e branca da população, é um elemento central na elaboração das identidades individuais e coletivas. O racismo dito científico foi fundamental para colocar a própria Europa no centro da história mundial e da chamada civilização ocidental e cristã.

O domínio europeu sobre a África, a América e a Ásia foram fundamentais para inventar a Europa como centro do mundo civilizado, um mundo branco e superior cultural e racialmente. No Sul do Brasil, bem como em outras partes do país para onde se dirigiu a diáspora dos migrantes vindos dessa região, a europeidade e a branquitude das populações oriundas da imigração de populações vindas do continente europeu (a maioria constituída por camponeses pobres e com baixo nível de educação) conferiria uma superioridade racial e cultural em relação aos nordestinos, descendentes de negros e indígenas.

Nos discursos neonazistas brasileiros se associa aos nordestinos o mesmo imaginário preconceituoso que se costuma associar aos negros e aos índios. Os nordestinos seriam física e intelectualmente inferiores, caracterizados mais pela sensibilidade, pela emotividade, do que pela racionalidade. Os nordestinos seriam preguiçosos, vivendo às custas de ajudas vindas do Estado, amealhadas com os impostos e com o trabalho dos sulistas. A criação dos programas sociais nos governos do Partido dos Trabalhadores, notadamente do Bolsa Família, que contemplava uma grande quantidade de nordestinos, por ser o Nordeste a região onde se concentra uma parcela considerável dos mais pobres do país, potencializou esse discurso e o levou a ser mais efetivo. 

Os nordestinos, notadamente a sua classe política, seriam caracterizados pela corrupção (não é mera coincidência que a operação Lava Jato deu origem a chamada República de Curitiba, decantada em outdoor como a terra de combate a corrupção, era o justiceiro sulista contra os políticos corruptos do Nordeste, tal como o seu principal alvo, o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva), pelo atraso das ideias e práticas e pelo coronelismo. Os nordestinos não saberiam votar, se deixando levar não pela racionalidade, mas pela necessidade, nordestino votaria com o bucho e não com a cabeça. 

O fato da esquerda, do PT, ter vencido com votações expressivas no Nordeste, todas as últimas cinco eleições presidenciais, deu aos neonazistas brasileiros mais um argumento contra os nordestinos: eles, assim como eram os judeus (afinal Karl Marx era judeu), seriam comunistas. O movimento separatista nomeado de “o Sul é o meu país” surgiu da contrariedade de parcelas das classes médias desses estados com o fato de que essa região não consegue ser decisiva no processo eleitoral brasileiro, assim como os nove estados nordestinos são, notadamente, a Bahia.

O estereótipo do baiano, a forma como os nordestinos são genericamente identificados em São Paulo, muito influencia para a percepção neonazista acerca dos nordestinos. Eles seriam sujos, pouco civilizados, perigosos, tendentes a violência e a criminalidade (o uso da faca peixeira seria uma possibilidade iminente) já que se concentrariam nas áreas de maior pobreza e exclusão das grandes metrópoles do país. Os nordestinos seriam feios, não atenderiam aos padrões estéticos ditados pelo arianismo (como pregava o nazismo), não atenderiam aos requisitos de branquitude e europeidade, a cabeça-chata, o raquitismo e o desengonçado do corpo do retirante, fariam dos nordestinos o exemplo de inferioridade natural e biológica. 

Ignorantes, seriam pouco afeito ao trabalho intelectual, voltados para o trabalho braçal e para as ocupações de menor prestígio. Por isso mesmo contribuiriam para o atraso cultural e tecnológico do país. Se não conseguimos ombrear com os países do Norte global, é porque somos habitados por sub-raças como os nordestinos e nortistas. 

O nordestino se constitui assim num bode expiatório para toda sorte de ressentimentos e frustrações de ordem social, cultural, política ou emocional-afetiva. Ele é sempre aquele que pode se culpar pela vida coletiva do país ou pela vida individual não estar conforme se sonha ou se deseja. O inferior, o indesejável, aquele a quem, em última instancia, se deseja a eliminação e o desaparecimento. 

O crescimento do neonazismo é um fenômeno preocupante em termos globais, não apenas no Brasil. É preciso não apenas a denuncia e a repressão, mas sobretudo o esclarecimento da população, através da educação, o que foi o nazismo e o que ele verdadeiramente significou na história da humanidade: morte, violência, discriminação, perseguição, guerra, o desrespeito aos preceitos básicos da civilização, dos direitos humanos e da convivência entre pessoas, povos e nações.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.



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