Pequeno manual para presidenciáveis em campanha no Nordeste

Legenda: Estátua de Padre Cícero já recebeu visitas de diferentes presidentes da República e candidatos a presidente
Foto: Kid Jr

O Nordeste é uma região cobiçada eleitoralmente, afinal nele vivem 53.081.950 brasileiros, dos quais 39.283.021 são eleitores aptos a votar. Os presidenciáveis, candidatos que disputam o cargo de Presidente da República, costumam, em sua maioria, serem de outras regiões do país, tendo pouco conhecimento e afinidade com a região, quando não partilham os preconceitos de que esse espaço é vítima em termos nacionais. Quando veem visitar a região, em campanha, comumente se deixam guiar pela visão estereotipada que possuem acerca dos habitantes e do que seria a cultura regional, visão muitas vezes reforçada e oferecida pelos próprios correligionários, lideranças políticas locais e puxa-sacos em geral, que reforçam a estereotipia sobre o regional, levando os candidatos a repetirem os mesmos gestos, os mesmos rituais, as mesmas falas, as mesmas atitudes. 

Tentando exibir uma intimidade com a cultura regional que não possuem, tentando ser identificados como sendo alguém que partilha com a população nordestina do apreço por certas práticas, por certos símbolos, por certos mitos da região, a passagem dos presidenciáveis por esse espaço muitas vezes são marcadas por gafes, cenas ridículas e fora de lugar, por ações totalmente artificiais, forçadas, beirando a caricatura.

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Como a campanha presidencial desse ano só está começando, mas já se presencia a episódios constrangedores, envolvendo os postulantes ao cargo, quando desembarcam na região, resolvi redigir esse pequeno manual para presidenciáveis em campanha no Nordeste. A primeira recomendação é que antes de visitarem esse espaço consultem um bom manual de geografia. Ao contrário do que alguns candidatos pensam, o Nordeste não é uma realidade espacialmente monolítica, não se constitui só de sertão, caatinga e secas periódicas e nele não faz calor em todos os locais, todo período do ano. 

O Nordeste é bastante diverso, afinal sua extensão é de 1.558.000 Km2, é composto por nove estados e mil setecentos e noventa e três municípios. Seu território compreende quatro sub-regiões, justamente porque em cada uma delas a realidade climática, a vegetação, os tipos de solos, as atividades econômicas e mesmo o processo de formação histórica são/foram diferentes. Como já houve um sábio candidato que conversou com agricultores do agreste do Ceará, é bom que antes de vir a região se dê uma olhada nos mapas com as sub-regiões do Nordeste, elas são: a Zona da Mata, que percorre o litoral entre o Rio Grande do Norte e a Bahia, o Agreste que se estende paralelamente a Zona da Mata entre os mesmo estados, ou seja, não existe Agreste no Ceará, que fica inteiro na terceira sub-região, o Sertão, que se faz presente em todos os estados nordestinos, com a exceção do Maranhão. 

Fiquem alertas e tenham cuidado ao dizerem que visitaram o sertão do Maranhão, esse estado junto com parte do Piauí compõe a quarta sub-região do Nordeste, o Meio-Norte, não contando oficialmente com espaço sertanejo.

Vindo ao Nordeste os candidatos se preparam para passar calor e para percorrerem a paisagens inóspitas da caatinga, tal como leram no clássico Os Sertões de Euclides da Cunha (quando leram alguma coisa). Recomendo que se a visita ocorrer nos meses de maio, junho ou julho, dependendo do local a ser visitado, é bom trazer um casaco para não ter que usar aquele emprestado do prefeito, cuja manga ficará quase no cotovelo e não fechará na frente. 

Se for a Garanhuns, Gravatá, Campina Grande, por exemplo, pode pegar temperaturas de até 12 graus, já que os climas no Nordeste são de três tipos: tropical, semiárido e equatorial úmido. Se vir esperando encontrar só caatinga, pode se deparar com a mata atlântica, com o cerrado, com a mata dos cocais e até com parte da floresta amazônica. Se preparou um discurso pensando o nordestino como sendo o sertanejo, tal como viu nos manuais escolares como um tipo regional, homem do campo, agricultor ou vaqueiro, homem simples, de cultura rudimentar, analfabeto, crédulo, que grita sempre: “muito bem doutor”, para toda e qualquer demagogia, que está disposto a acreditar na inauguração da obra para “solucionar a seca”, mesmo que ela não derrame uma gota d’água na cerimônia, é bom ir reformulando o conceito de nordestino. 

O Nordeste tem cerca de setenta e um por cento de sua população vivendo em zonas urbanas, possui trinta cidades com mais de cem mil habitantes, nove com mais de duzentos mil, oito com trezentos mil, uma com quatrocentos mil, duas com seiscentos mil, uma com setecentos mil, três com oitocentos mil, três com um milhão de habitantes, duas com dois milhões de habitantes. Há área metropolitanas como a de Recife que supera os quatro milhões de habitantes e as de Salvador e Fortaleza, superam os três milhões de habitantes.

Essa visão do Nordeste como um espaço rural e de práticas ligadas ao campo, reproduzida pelos próprios políticos locais, fazem os presidenciáveis perpetrarem cena bizarras e completamente artificiais, como: terem que andar de jegue ou a cavalo (em 1994 e 1998, em Delmiro Gouveia e Petrolina, Fernando Henrique Cardoso conseguiu permanecer uns três minutos sobre o cavalo, tempo para gravar e tirar a fotos. Nada à vontade, logo parou e ficou a conversar com os vaqueiros, visivelmente constrangido com o papelão). Recentemente foi anunciada, na visita de Bolsonaro ao Rio Grande do Norte, a realização de uma “jeguiata”, que seria a versão nordestina das “motociatas” que costuma protagonizar em outros estados, possivelmente porque no Nordeste o tempo das máquinas ainda não chegou e, afinal, o jumento é nosso irmão, segundo o cantor maior desse espaço. Muitos acreditam, inclusive, que na hora de votar os nordestinos são burros, votam com a barriga e não com o cérebro.

Um candidato a presidente não pode deixar de visitar a terra de meu Padim Padre Cícero, de visitar sua estátua e se mostrar um devoto, mesmo que não saiba sequer em que estado ele nasceu, de preferência vestindo-se de romeiro, portando chapéu de palha e tudo. Colocar um chapéu de couro, de preferência um chapéu de cangaceiro, trazido pelo seguidor regionalista e entusiasta de sua candidatura. A combinação entre a fatiota portada pelo candidato e o chapéu de couro, quase sempre é constrangedora. O pescoço do candidato fica tão rígido portando aquele adereço, dado o desconforto, que é capaz de ter um torcicolo. 

Mas é no aspecto gastronômico que presidenciável em campanha, no Nordeste, costuma literalmente passar mal. Recomendo trazerem sal de fruta, remédio para diarreia e infecção intestinal e sobretudo que fiquem só na tapioca, no beiju, na cajuína, evitem a buchada e sobretudo o sarapatel. Na campanha de 1994, Fernando Henrique Cardoso, para espanto geral de quem o acompanhava, aceitou comer uma buchada que lhe foi oferecida por um camponês, do município de Petrolina, afirmando para incrédulos repórteres que aquele era um prato muito apreciado em Paris. Na campanha de 2006, o candidato Geraldo Alckmin teve que suspender a viagem que fazia pelo Nordeste e retornar a São Paulo, devido uma infecção intestinal após ser convidado a comer um sarapatel no Mercado de São José, no Recife.

Recomenda-se prometer solucionar o problema da seca (que é o mesmo que na Dinamarca se prometer acabar com a neve), de preferência repetindo a frase que teria sido dita pelo Imperador Pedro II, quando da seca de 1877-1879, ou seja, com adaptações para nosso tempo republicano prometer “gastar até o último diamante da Coroa para impedir que os nortistas continuem morrendo de fome e sede”, quem sabe hoje prometer gastar até o último tostão do orçamento secreto para resolver a seca. 

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Inaugurar obras voltadas para resolver o problema, mesmo que tenha sido feita por uma gestão anterior, se possível inaugurar cada etapa, várias vezes, e mesmo que a prometida água não tenha chegado. Não esquecendo de acusar os adversários políticos pelos possíveis atrasos na obra e por ela não corresponder ao que se esperava. Espalhar faixas e outdoors ao longo da rodovia que leva a obra, felicitando a si mesmo por tê-la realizado, como se fossem os moradores locais ou solicitar que seus correligionários o façam. Recomenda-se não os colocar com muita antecedência e convocar a Polícia Rodoviária Federal para garantir que pichadores adversários não venham estragar a sua auto-homenagem. É fundamental que os apoiadores locais tragam pessoas, seja de que lugar for, para que seu comício tenha muita gente, para que a entrega de título de cidadão, daquela cidade, ao presidenciável, não seja um mico e, em último caso, que a equipe de filmagem dê um jeito de fazer de um punhado de gente uma multidão.

E, por fim, recomenda-se trazer muita roupa para trocar, um bom perfume e preparar seus mocassins para enfrentar poeira, barro e lama. Dizem que as gentes dessa região são hospitaleiras, são afetivas, são chegadas a intimidades com os forasteiros, ficam entusiasmadas com a presença de autoridades e costumam chamar para o bucho qualquer um que quer cumprimentar com efusão. Se o presidenciável é um mauricinho, que não gosta de cheiro de pobre, que não é adepto do cheiro de suor, que só costuma usar perfumes caros e importados, deve se preparar não só para o aperto de mãos calejadas e maltratadas, para pôr a criança desnutrida no colo e beijá-la, mas para ser abraçado, puxado, até beliscado, por homens e mulheres cujo perfume nem sempre é aquele que as narinas sensíveis do candidato estão acostumadas. 

É necessário trazer um assessor só para segurar os presentes, dos pequenos até os maiores (santos, bonés, camisetas, que devem ser postos e vestidos, terços, medalhas, objetos de artesanato, etc) e os bilhetes e cartas com pedidos os mais comezinhos e extravagantes, com versos, orações, cordéis, etc. Prometa que ao chegar em casa ou no hotel vai ler e vai dar resposta a todos eles.

Seguindo esse manual talvez os presidenciáveis deixem de protagonizar tanta cena folclórica e bizarra quando vêm fazer campanhas no Nordeste, deixem de encenar papeis, muitas vezes ridículos e fora de lugar e época, deixem de tomar atitudes que demonstram, apenas, a visão estereotipada e preconceituosa sobre a região. Sobretudo, antes de vir fazer campanha na região, não chamem os nordestinos de paraíbas, baianos, paus-de-arara, flagelados, cabeças-chata, pois as populações do Nordeste estão cansadas de candidatos preconceituosos e que os desrespeitam e assim mesmo têm coragem de vir pedir o seu voto.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.



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