Os sertanejos e a chuva: uma relação singular

Legenda: Quando um sertanejo diz que “está bonito para chover”, ele se refere à presença de nuvens espessas, à um céu nublado, muitas vezes já com a ocorrência de relâmpagos e trovões, à visão, ao longe, de chuvas que estão se precipitando em outras localidades
Foto: Honório Barbosa

Desde o final do mês de dezembro, proliferam no Youtube e em outras plataformas digitais vídeos feitos por moradores de várias localidades do Nordeste, notadamente de municípios localizados no sertão, mostrando a chuva que está se formando, que está caindo ou que acabou de acontecer. Há canais destinados a mostrar esses vídeos amadores, feitos com o uso do celular e que registram a ocorrência de chuvas em municípios de todos os estados nordestinos, como os canais Chuvas no Sertão e Desbravando o Sertão. 

Esses fatos testemunham que a ocorrência de chuvas não é um acontecimento banal para os nordestinos, notadamente para aqueles que habitam a subregião nomeada de sertão, que moram na área caracterizada pelo clima semiárido e que convivem com a ocorrência periódica da ausência de chuvas, que têm que enfrentar a escassez de águas durante as secas, que acontecem de modo regular nesse espaço. 

Veja também

O fato de que as chuvas não aconteçam, pelo menos durante seis meses, em anos regulares e possa não cair, por anos seguidos, em tempos de estiagens, dá a esse fenômeno natural sentidos particulares, sentidos que fazem parte da cultura da população dessa área do país. E como podemos ver nos vídeos, esses sentidos não são partilhados apenas pelos homens e mulheres que residem na zona rural que, vivendo da agricultura ou da pecuária, necessitam das chuvas para o exercício de suas atividades econômicas. 

Muitas das gravações foram feitas por residentes das zonas urbanas, até mesmo das grandes cidades da região, das capitais dos estados, que ignorando a geografia oficial, fazem dessas cidades do litoral parte do sertão, talvez porque muitas delas sejam migrantes dessa área e tragam o sertão dentro de si mesmas, vivam subjetiva e afetivamente no sertão em plena metrópole litorânea.

Os moradores de outras regiões do país, onde a presença de chuvas é constante, jamais se ocupariam em gravar vídeos mostrando a ocorrência desse fenômeno corriqueiro. Somente quando as chuvas causam grandes alagamentos, desastres como o ocorrido no município de Francisco Morato, em São Paulo, quando causam deslizamentos e provocam desabamentos e mortes, elas são motivo de registro. 

No Nordeste, no entanto, a chegada da chuva mais comezinha, mais comum, torna-se um acontecimento, digno de comemoração e registro. Os nordestinos, notadamente os sertanejos, manifestam uma alegria e um contentamento diante da chuva, que não se verifica em nenhuma outra região do país. A chuva é motivo de gritos de contentamento, de interjeições e exclamações, que explicitam um estado emocional de satisfação e júbilo. 

Eu recordo de meu pai, proprietário de terras na região do Cariri paraibano, aos gritos no meio do pátio, quando as primeiras chuvas chegavam, com uma enorme alegria estampada no rosto. Em noites de chuva, ele se punha a cantar, o que era muito raro de acontecer, fazendo concorrência ao coaxar de sapos e rãs. Em muitos dos vídeos, as pessoas aparecem quase gritando, falando com animação da chuva que está caindo naquele momento, usando expressões como: arrocha!, eita lasqueira!, olha aí pessoal!, é chuva, é chuva!, é água, é agua!

O sertanejo nordestino possui concepções estéticas muito particulares, quando se trata do fenômeno da chuva: um céu bonito não é um céu ensolarado, claro, completamente sem nuvens, de um azul nítido, como em outras regiões do país. 

Agricultor agradece chuvas a São José
Legenda: Agricultor agradece chuvas a São José
Foto: Marciel Bezerra

No Nordeste existe o “céu bonito para chover”, um céu sombrio, com nuvens escuras e carregadas, um céu quase sem luminosidade, do qual não se vê o azul. Quando um sertanejo diz que “está bonito para chover”, ele se refere à presença de nuvens espessas, à um céu nublado, muitas vezes já com a ocorrência de relâmpagos e trovões, à visão, ao longe, de chuvas que estão se precipitando em outras localidades. Ou seja, no Nordeste, notadamente no sertão, a chuva é bonita, é bela, é um fenômeno dotado de atributos estéticos positivos. 

É comum nos vídeos a que fiz referência, as pessoas usarem a expressão “que beleza”, para se referirem à chuva que estava acontecendo. A chuva é do campo do maravilhoso, é “uma maravilha”, como muitos proclamam. Uma maravilha é um fenômeno fora do comum, um fenômeno que rompe com a normalidade, com a ordem natural das coisas.

A sensação de maravilhamento é produzida por algo excepcional, por um acontecimento extraordinário, é um estado produzido pela surpresa e pelo inusitado. Ao dizer que a chuva é uma maravilha, os sertanejos estão enfatizando, talvez sem saber, o que seria seu caráter de um fenômeno raro e inesperado, um fenômeno fora do comum. A chuva no sertão tem esse sentido de um fenômeno excepcional, único, um fenômeno carregado de emotividade e deslumbramento.

A chuva é “uma graça”, uma dádiva divina. É comum no material a que tive acesso a referência a chuva como a prova, inclusive, da existência de Deus. Alguns aproveitam a chuva para fazer comentários e proselitismo acerca dos poderes de Deus e de Jesus.

O interessante é que essas mesmas pessoas não estariam dispostas a comentar o porquê de Deus também enviar as secas, algumas de até cinco anos, com seu cortejo de morte, fome, sede e miséria (quando o fazem a culpa é dos homens pecadores, a seca seria o castigo por nossos pecados, pois Deus é sempre bom, Ele nunca é a causa dos males, só das coisas boas e positivas como as chuvas). Muitos exclamam que a chuva é uma glória (oh glória!), ato em que, ao mesmo tempo, glorificam a chuva que está caindo e a remetem a ser testemunho da glória do Senhor que a envia. 

A chuva no sertão é quase um milagre, é da ordem do fato extraordinário e causador de grande comoção. É como se a ordem natural nesse espaço fosse a ausência de chuvas, sua ocorrência romperia com essa ordem natural, daí seu caráter taumatúrgico e miraculoso. A chuva operaria, no sertão, ao milagre do renascimento da natureza, do verde que, em pouco tempo, viria substituir a rotina do cinza, do ocre e do gretado, que seria a norma na paisagem da caatinga sertaneja.

À chuva estaria associada a fartura, o fim de tempos de penúria e necessidade. No Nordeste o período chuvoso do ano é chamado de inverno. O inverno nordestino não é a estação do ano marcada pelas baixas temperaturas. Como grande parte das chuvas no sertão nordestino caem no período do verão e do outono, podendo chegar, em anos favoráveis, ao período de inverno, o inverno nordestino abarca todas essas estações, pois ele é definido pela ocorrência de chuvas. 

pessoas oração chuva
Legenda: Em Canindé, moradores fazem oração por chuvas no sertão
Foto: Antonio Carlos Alves

Em outras áreas do país não faz sentido se perguntar se “o inverno foi bom”, se esse ano “foi bom de inverno”, pois normalmente o inverno não costuma ser a estação do ano mais admirada. Para o nordestino do litoral talvez faça sentido pensar o verão como sendo uma boa estação, até porque, com o turismo, esse período é aquele em que se realizam os melhores negócios, mas para um sertanejo o verão é tudo o que não se quer que chegue ou permaneça.

As principais festas sertanejas, como as festas juninas, as festas das comidas de milho, são festas que coincidem com o período da colheita, nos anos em que as chuvas caem com regularidade, são festas de inverno (até mesmo na convencional divisão das estações,pois a festa de São João e a de São Pedro ocorrem no início dessa estação).

Há muitos adjetivos com os quais os nordestinos, notadamente os sertanejos, qualificam a chuva. Essa riqueza de atributos deixa clara a importância e o valor que esse fenômeno tem para os moradores desse espaço. A chuva pode ser forte ou fraca, dependendo de sua intensidade. O nordestino se anima quando está chovendo forte, quando está caindo “um pé d’água”, quando vem uma “pancada de chuva”, quando vem “muita chuva”. Tem a “chuva de vento”, uma chuva acompanhada de muito vento, tem a “chuva de granizo”, aquela em que pedras de gelo se precipitam junto com a água. 

Existe a “chuva de recuada”, aquela em que a chuva ao invés de vir da direção leste, do litoral, ela vem do oeste, vem da direção do próprio interior (normalmente provocadas pela umidade vinda da floresta amazônica). Todo nordestino sonha com uma “chuva criadeira”, aquela chuva fina e constante, que umedece bem o solo e é boa para as plantações, pois não causa nenhuma destruição. Mas também, notadamente quando das primeiras chuvas, deseja a “chuva de encher tudo”, a chuva que permite “as águas correrem”, a chuva de “encher bica”, uma chuva que não seja “só de apagar poeira”, uma chuva capaz de encher barragens, açudes, barreiros e cisternas. 

Um dos espetáculos mais filmados pelos sertanejos são das águas correndo em grande volume, chegando aos rios, riachos e barragens secos, transbordando pelos “sangradouros” e derramando por sobre as paredes dos reservatórios de água, formando cascatas e cachoeiras.

A chuva pode ser grossa ou fina, brava ou mansa, mas sempre é uma “chuva boa”. A chuva representa para o sertanejo tudo que é de bom, ela nunca será vista como um mal, mesmo que cause prejuízos e danos, mesmo que cause mortes (o que é muito raro no espaço sertanejo, só se for “morrer de raio”, vítima de uma descarga elétrica), ela é sempre “coisa de Deus”, ela é um “mistério” da divindade, ela é sempre “uma riqueza”, ela nunca remete a pobreza e a miséria (que é produto das secas). 

A relação dos sertanejos com a chuva é muito singular, é uma relação de desejo e prazer, é uma relação de alegria e contentamento, é uma relação de júbilo e maravilhamento, é uma relação emotiva, sensível, estética, é uma relação afetiva e mística (é um capítulo a parte na cultura dessa região as formas de se fazer profecias de inverno, de fazer previsões de chuva através da observação da natureza, de se fazer promessas e se conseguir através da interseção do sagrado que as chuvas ocorram). Haja chuva!, é tudo que um sertanejo mais deseja dizer.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.



Assuntos Relacionados