Quem foi o personagem da literatura que inspirou o reality show No Limite

Clássico do século 18 sobre náufrago inglês teve como referência um caso real acontecido numa ilha do Chile

Quando estreou na TV brasileira, em julho de 2000, No Limite foi tomado como uma versão do norte-americano "Survivor", transmitido lá fora dois meses antes. O fio que leva à origem do reality show da Globo, no entanto, é bem mais longo. Os dois programas reproduzem o formato do sueco “Expedition Robinson”. Seu criador, o inglês Mark Burnett, foi buscar a inspiração em um clássico da literatura de seu país. 

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“Robinson” é uma referência direta a Robinson Crusoé. Sua primeira aparição se deu no livro publicado pelo jornalista e escritor Daniel Defoe, em 1719. Nele, são narradas as aventuras e desventuras do personagem, um inglês que ouviu o chamado do mar e partiu contra a vontade da família, que sonhava vê-lo advogado. Sobrevivente único de um naufrágio, ele passa 28 anos numa ilha deserta.

Inóspito, o território na costa Venezuelana é domesticado, aos poucos, por um habilidoso Crusoé. O local tem seus perigos, uns permanentes, outros inesperados, como os canibais que visitam a ilha para, ali, devorarem suas vítimas cativas.
 

"Robinson Crusoé” (ou mais exatamente “A vida e as aventuras estranhas e surpreendentes de Robinson Crusoé: de York, marinheiro que viveu 28 anos sozinho em uma ilha desabitada na costa da América, perto da foz do grande rio Oroonoque; ... escrito por ele mesmo”) foi um sucesso. Editado em abril, o livro teve quatro edições esgotadas antes do fim do ano.  

Legenda: "Robinson Crusoé" foi adaptado para o cinema em 1954, numa produção mexicana dirigida pelo cineasta Luis Buñuel
Foto: Divulgação

Defoe faria inveja aos profissionais do entretenimento de hoje. Ágil, soube aproveitar o sucesso que lhe chegou aos 59 anos. Ainda em 1719, publicou uma sequência do livro. Nele, o ex-náufrago segue, se aventura oceanos afora. Crusoé visitava a África, a Ásia e a Eurásia. No ano seguinte, um terceiro título foi publicado, mas o autor, ao invés de apresentar novas venturas de seu personagem famoso, escreveu em primeira pessoa reflexões de Crusoé sobre temas presentes em suas aventuras – caso da solidão e da liberdade religiosa.   

Passagem pelo Brasil 

Se na cronologia dos reality shows, Robinson Crusoé chegou primeiro à Suécia, na ficção o personagem preferiu o Brasil. A aventura, ambientada em meados do século 17, tem a então colônia portuguesa como cenário de parte da história. Foi aqui que o personagem fixou-se por alguns anos, amansando temporariamente a sua paixão náutica. 

A verdade é que o Crusoé não tem lá muita sorte a bordo. Antes de ir parar na ilha deserta para sua longa estadia, ele havia estreado no mar com um naufrágio. Em sua segunda empreitada, é capturado por piratas e feito escravo.

O inglês consegue fugir de barco com a ajuda de um menino chamado Xury, e a dupla é resgatada por um navio português. É aí onde se inicia o capítulo mais sombrio da aventura, da personalidade e do conceito de Robinson Crusoé.

Legenda: O personagem de Dafoe, em gravura do século 19: Crusoé lê a Bíblia, sob o teto que ele mesmo construiu
Foto: Divulgação

O herói de Defoe vende Xury para o capitão português. A embarcação lusa, em rota para o Brasil, nos traz o aventureiro. Aqui ele desembarca e se fixa, vivendo da produção agrícola com mão-de-obra escravizada. Crusoé volta ao mar com o objetivo nada romântico: seu plano é ir à África para trazer mais pessoas cativas ao Brasil e submetê-las ao trabalho escravo. 

No naufrágio que leva Robinson Crusoé à famosa ilha deserta, portanto, é a sentença de morte não apenas de sua tripulação. Morrem no desastre as pessoas negras tiradas à força de suas terras no continente africano para viverem um pesadelo em solo brasileiro.

Colonialista  

As aventuras de Crusoé, ao longo do tempo, foram criticadas por reproduzir uma ideologia imperialista e racista. Na ilha deserta, ele salva um nativo-americano dos canibais e o batiza de Sexta-Feira. O homem aprende a língua inglesa e é convertido ao cristianismo pelo náufrago britânico. Será sua companhia na ilha, mas também seu criado. 

Em 1912, o escritor irlandês James Joyce, num ensaio sobre Defoe, descreveu Crusoé como a tradução exata do espírito colonialista britânico. O império, que havia invadido e submeteu povos em todos os continentes, partilharia com o personagem “a independência viril, a crueldade inconsciente, a persistência, a inteligência lenta porém eficiente, a apatia sexual, a taciturnidade calculista”. 

Personagem complexo, Crusoé é capaz, em outras circunstâncias, de reflexões à frente de seu tempo. Como certo senso etnográfico, ele é capaz de relativizar o costume antropófago dos visitantes da ilha. Primeiro, a devoração de seres humanos o horroriza, para então olhar para ela como uma prática enraizada na cultura daquele povo e em acordo com o seu conjunto de crenças. 

De volta à ilha deserta 

Quando foi publicado, “Robinson Crusoé” foi tomado por parte dos leitores como um relato real. Seu título quilométrico confundia, com aquele “escrito por ele mesmo”. Sem chegar a ser uma reportagem ou uma peça historiográfica, a ficção de Defoe tinha algum pé na realidade. Antes de escrevê-la, o autor bebeu de histórias reais de náufragos.  

A referência mais conhecida é a vida de Alexander Selkirk (1676-1721), escocês que 10 anos antes havia sido resgatado de uma ilha da costa do Chile. Ali, ele havia passado quatro anos sozinho. Ironia do destino: em 1966, para atrair turistas, o governo chileno a rebatizou, homenageando não o náufrago de carne e osso, mas o de tinta de imaginação. 

Crusoé sempre fascinou quem conheceu sua história. No século 19, já podia ser lido em dezenas de idiomas e contava até com adaptações para o público infantil.

O sucesso continuou no século 20, quando desembarcou no teatro, nos quadrinhos e no cinema. Na sétima arte, ele foi de filme russo em 3D, nos anos 1940, até animações para crianças, passando por uma encarnação canastrona de Pierce Brosnan. 

É o ensaísta e bibliófilo argentino Alberto Manguel quem ajuda o que faz de um clássico Crusoé que, como tal, não se esgota. "Como seus leitores sabe, ninguém desembarca numa ilha deserta pela primeira vez”, escreve em “Fabulous Monsters” (2019, ainda inédito no Brasil). “Desde aquela manhã de outubro de 1659, quando Crusoé chegou à ilha, mais ou menos esperançoso, nós repetimos infinitamente seu gesto primordial”.

Há muito de Crusoé em outro herói colonialista, Tarzan dos Macacos; em "Náufrago", de Tom Hanks; e mesmo no exageradamente habilidoso personagem dos anos 80 MacGyver, da série "Profissão: Perigo"

Vemos, por todo canto, o triunfo do engenho e da habilidade humana, que desafia o desconhecido e sobrevive à solidão. Foi assim com os náufragos dos tempos de Defoe. Foi assim quando Neil Armstrong (1930-2012) desembarcou na Lua, 250 anos depois de Crusoé nascer nas páginas de um livro. E parece ser exatamente esse o encanto, sobre as audiências, da expedição sueca, do desafio à sobrevivência americano e de quem vai ao limite em praias do Ceará.