Cotas para pessoas trans no ensino superior

Pensar, articular e implementar cotas para trans no campo da educação precisa estar na agenda programática dos governos democráticos

Legenda: Estima-se que menos de 10% das universidades federais brasileiras prevejam em seus processos seletivos alguma vaga de graduação destinada para pessoas trans, ainda que o Supremo Tribunal Federal (STF) tenha reconhecido a transfobia em 2019 como expressão de racismo, fenômeno cujo combate é o argumento central da Lei de Cotas
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A promulgação da Lei nº 12.711/2012 é um marco histórico das políticas afirmativas para populações negras, indígenas e quilombolas no Brasil. Passados pouco mais de 12 anos do seu surgimento, não há dúvida que o estabelecimento de cotas raciais para acesso ao ensino superior vem mudando a cara das universidades públicas do país. A “Lei das Cotas” foi revista em 2022, deixando para trás - todavia - o debate acerca das barreiras de acesso e à permanência de travestis e transexuais no ensino superior.

Uma questão central ao tratarmos de políticas e ações afirmativas é entendermos que elas partem de duas premissas fundamentais: uma é o reconhecimento de que determinados grupos populacionais vivem processos de desigualdade dentro da estrutura social a partir das suas diferenças, como raça, classe social, gênero etc.

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A segunda consiste na compreensão de que a promoção da equidade não se estabelecerá natural e espontaneamente na sociedade, porque há uma longa caminhada histórica já percorrida e pavimentada em relações de dominação, exigindo a criação de mecanismos que ajudem a reparar a disparidade constituída entre grupos que, por não terem saltado do mesmo ponto de partida, não alcançarão a linha de chegada da mesma forma, por mais hercúleos que sejam os seus esforços.

Não há mais como ignorar o fato de que, no campo da educação, essas desigualdades sociais afetam sobretudo os corpos de pessoas tidas como "dissidentes", em especial pessoas travestis e transexuais. Basta observarmos, por exemplo, a enxurrada de discursos de ódio e as tentativas de embargo judicial às tímidas iniciativas de se estabelecer cotas para pessoas trans nas universidades públicas.

Estima-se que menos de 10% das universidades federais brasileiras prevejam em seus processos seletivos alguma vaga de graduação destinada para pessoas trans, ainda que o Supremo Tribunal Federal (STF) tenha reconhecido a transfobia em 2019 como expressão de racismo, fenômeno cujo combate é o argumento central da Lei de Cotas.

Ingressei na pós-graduação em instituições públicas por meio das cotas. Não sou uma pesquisadora das ações afirmativas, mas uma beneficiária delas. Em um primeiro momento, lancei mão das cotas raciais para negros/as e, atualmente, curso um doutorado por meio das contas de pessoas trans, através de uma iniciativa isolada da Universidade, que desafia o silêncio legislativo e administrativo federal sobre a questão.

Mesmo com as cotas, não tem sido fácil permanecer como travesti preta e da classe trabalhadora no espaço acadêmico, mas sou prova da potencialidade das cotas e dos grandes desafios que essas políticas ainda precisam encarar para promover – de fato- o acesso à educação para travestis e transexuais.

Recentemente, a Associação de Travestis e Transexuais (ANTRA) lançou uma Nota Técnica em defesa de cotas trans no ensino superior. Entre as ideias centrais do documento, cita-se que a adoção de cotas para este grupo indica um posicionamento político estratégico e necessário de enfrentamento à transfobia, compreendendo a presença de travestis e transexuais em espaços de educação formal como fator de proteção, de valorização da diversidade no ambiente universitário e de reparação dos contextos de vulnerabilidade social no Brasil.

A associação defende ainda que as políticas institucionais de ação afirmativa ultrapassem a dimensão do acesso e incorporem as perspectivas de garantia da permanência e do acompanhamento qualitativo dessas ações afirmativas.

Pensar, articular e implementar cotas para trans no campo da educação precisa estar na agenda programática dos governos democráticos e, nessa matéria, estamos todos atrasados.

Enquanto grupos conservadores atacam violentamente qualquer intenção de promoção da cidadania de LGBTI+, a inserção quantitativa de travestis e transexuais no ambiente acadêmico tomam de assalto um debate sobre um horizonte maior e necessário, o da construção de uma relação de respeito à pluralidade e às vida trans nos processos e espaços de educação, desde a concepção da estrutura/arquitetura, a exemplo dos banheiros, até a revisão de conteúdos discriminatórios.

O argumento de que as bancas de vestibular e as oportunidades estão aí para quem quiser e se esforçar não se sustenta. Não somos preguiçosas, pelo contrário. Estamos exaustas de sermos atravessadas por narrativas de morte enquanto queremos disputar a vida, a fatia do bolo, ocupar os espaços que nos foram negados e que nos são de direito. Cotas para pessoas trans como política de Estado já!

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora.

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