As eleições municipais de Fortaleza têm apresentado um aparente paradoxo em 2024: de um lado, a bandeira do arco-íris se tornou um símbolo mais constante nos encontros, convenções e bandeiraços de diferentes agrupamentos políticos em disputa; de outro, ao analisarmos os planos de governo dos candidatos majoritários, observamos a quase ausência de propostas para o movimento LGBTI+ entre os compromissos eleitorais registrados junto ao Tribunal Regional Eleitoral (TRE).
Pesquisamos os planos de governo dos nove candidatos ao cargo de próximo chefe do Palácio do Bispo que disponibilizaram suas propostas e identificamos que, no que se refere às pautas dos movimentos sociais LGBTI+, tais documentos formam basicamente em dois grandes grupos.
O primeiro deles é caracterizado pela omissão de palavras-chave como Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexo, combate à LGBTIfobia, e cidadania para a população LGBTI+, um possível sintoma do alinhamento deste grupo políticos com os setores de direita ou extrema direita no Brasil.
Os candidatos André Fernandes (PL), Capitão Wagner (União), Eduardo Girão (Novo) e George Lima (Solidariedade), por exemplo, não apresentaram nenhuma ação direcionada à população LGBTI+, bem como não citaram tal população – mesmo que de forma genérica – em seus compromissos de campanha.
Já o segundo grupo de candidaturas comunga do fato de anunciarem, em maior ou menor medida, alguma intenção de desenvolvimento de ações e programas que envolvam o combate à violência e a valorização da diversidade de fortalezenses LGBTI+, ainda que as propostas sejam tímidas, pouco objetivas ou diluídas em enunciados genéricos que englobam outros grupos sociais. Compõem este segundo grupo os candidatos Chico Malta (PCB), Evandro Leitão (PT), José Sarto (PDT), Técio Nunes (PSOL) e Zé Batista (PSTU).
Dentre as propostas que sugerem as pessoas LGBTI+ como beneficiárias, identificamos o estímulo à empregabilidade, a implementação de cuidados específicos à saúde na rede pública municipal, a promoção de ações educativas de combate à discriminação e a criação de um telecanal de denúncias para casos de LGBTIfobia. Para além disso, restam formulações evasivas em torno da “promoção do respeito à diversidade”, da “igualdade”, da “inclusão social” e do combate à “qualquer tipo de discriminação”.
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Os planos que concorrem ao Paço Municipal ignoraram importantes demandas da população LGBTI+ local, a exemplo da criação do Fundo Municipal de Políticas Públicas para a população LGBTQIA+, do fortalecimento do Centro de Referência LGBT Janaína Dutra, da construção da política municipal de acolhimento institucional para pessoas LGBTI+ em situação de rua ou moradia intermitente em razão da LGBTI+fobia, bem como da construção e execução orçamentária de um novo Plano Municipal de Políticas Públicas para a população LGBTQIA+, cuja última edição encerrou sua vigência em 2022.[/citacao]
É importante situarmos que a esquiva dos planos de governo em tratar mais assertivamente de questões estratégicas para a promoção de direitos humanos das populações LGBTI+ não significa a irrelevância político-eleitoral desse grupo. De acordo com um estudo divulgado pela Universidade de São Paulo (USP) em 2022, 12% das pessoas adultas se denominam como LGBTI+ no Brasil.
Grosso modo, aplicada tal perspectiva ao contexto local, podemos estar falando de mais de 212 mil eleitores/as LGBTI+ aptos/as a votar apenas em Fortaleza no próximo dia 6 de outubro, equivalendo a mais de três arenas Castelão lotadas em sua capacidade máxima.
Ademais, o debate em torno de direitos de LGBTI+ não repercute tão somente nos limites de uma comunidade específica, mas reverbera junto a outros grupos sociais que se aliam ou não à ideia da diversidade como direito a ser preservado. Isso ficou explícito na campanha presidencial de 2018, quando o ataque aos direitos de grupos minorizados e a disseminação de fake news envolvendo a população LGBTI+ acabaram por subir o tom da disputa eleitoral e a demarcar o posicionamento político dos mais diversos setores sociais.
Se não é por uma irrelevância político-eleitoral e tampouco pela ausência de acúmulo do debate dentro dos quadros partidários, especialmente naqueles situados no campo de esquerda, por qual razão os planos de governo estão saindo pela tangente quanto à apresentação de propostas expressamente comprometidas com a mudança da realidade de pessoas LGBTI+, no país que mais mata este grupo social no mundo?
Ao me referir acima a um “aparente paradoxo”, indico que a forma tímida como as pautas LGBTI+ aparecem (ou não) nos planos de governo analisados não revelam uma completa contradição quando comparada à presença das bandeiras coloridas nas ruas, pelo contrário.
É perceptível que as bases partidárias LGBTI+ não estão o suficiente fortalecidas e internamente validadas para disputar junto às suas siglas a incorporação de propostas efetivamente conectadas às demandas históricas do seu povo e do seu tempo, pouco cruzando o limite da participação para além da condição de animadores, emprestando a simbologia de uma bandeira coletiva para projetos políticos que relutam em articular o combate à LGBTIfobia dentro da sua visão para a cidade.
Isso não é um paradoxo completo, mas um continuum da LGBTI+fobia, um retrato de como ela opera também como violência política.
O próximo gestor municipal encontrará uma Fortaleza diversa e marcada por desigualdades profundas. Ele receberá em sua mesa o desafio de construir uma cidade mais acolhedora e deve governar também a serviço da população LGBTI+, independente do resultado partidário. Dito isso, não precisamos de apoiadores “no sigilo", mas exigimos um projeto de sociedade que nos caiba com dignidade. E se for pra segurar a bandeira, que balancem logo com as duas mãos!
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora.