Quantas vezes na vida você já sorriu para espantar as lágrimas que se formavam ante aos olhos e ao peito aberto? Eu já, várias vezes. E dos incontáveis momentos em que isso ocorreu, muitos deles se deram nesse tempo turvo, incerto e doído da pandemia. Diversas das ocasiões nas quais entrei sorrindo na redação, em casa ou vaguei pela rua deserta, busquei refúgios entre risos.
“Sorrir pra não chorar”, como dizia o saudoso Cartola. Pra (re)nascer todos os dias em que quase morremos. Em que perdemos a rua e inumeráveis vivências e convivências. “Deixe-me ir”, pedia o poeta, como também almejei. “Quero viver”, dissemos, nós e ele. Porque viver é partilha de momentos entre os nossos amores. É presença.
Enquanto ouço Cartola dizendo que “vou por aí”, penso que eu já nem lembro há quanto tempo ando na rua sem muitos medos, novos e antigos. Também não lembrava mais há quanto tempo eu não cumprimentava alguém com meu rosto inteiro e entregue no meio da rua.
Eu, que trago nos dentes acesos a emoção que é estar junto, tive que reaprender a expressar minhas sesações, porque sorrir, quando foi possível, já não era o suficiente.
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Lembro-me muito bem que, dentre as saudades as quais mais me envolveram no início da pandemia, estavam as faltas dos abraços e dos sorrisos largos e soltos para tantos quantos cruzam meus dias, meus olhos.
Quando me adaptei ao uso da máscara, parece ter sido automático em mim espremer ainda mais os olhos para que as pessoas ao meu redor soubessem que eu as cumprimentava e as acolhia, apesar da carência dos encontros e tantas quantas mais tenham sido as nossas faltas nesses últimos e sombrios tempos de distâncias.
No meio da rua, no trabalho, na bodega, nas conversas tão preciosas entre rotinas, talvez quisesse não só acolher, mas também ser acolhida entre os olhos que saltavam ora entre meus óculos, ora entre uns brilhos de luz de vida no fundos olhos, meus e nossos.
Quando, segunda-feira, 21 de março de 2022, saí de casa, pela primeira vez, consciente de que eu estava sem máscara porque assim nos permitia o decreto estadual, eu me vi meio perdida. De tanto que acesso minhas rotinas e regras de vida, fiquei na dúvida sobre como me portar. Posso falar com as pessoas? Ou é melhor não me aproximar ?
Assim, revivi meus dias e saí cumprimentando apenas com sorriso aberto, meio que sem jeito, o vigia, o vizinho e a cadela peluda que também cruzou meu caminho, enquanto chovia leve como se a vida banhasse-nos palavras, as ditas e as não faladas. Aquelas que caem no peito feito orações de amor.
Agora, não sei ao certo ainda por quanto tempo celebrar mais uma das nossas tantas vitórias nesta pandemia que parece sem fim, porque sinto como se vagássemos numa gangorra de sentimentos que nos coloca bem no meio da medida entre a euforia e a contenção de emoções.
A alegria de poder andar na rua sem máscara, além do real conforto que é sentir o ar entrando e saindo sem barreiras entre nossos suspiros de vida, nos faz também, e pelo menos por enquanto, acessar nossos medos, e incertezas.
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Será que, diante da recente memória das ondas anteriores que submergiram nossas esperanças, vamos precisar recuar e guardar novamente os sorrisos no meio da rua? Será que realmente estamos seguros?
Essa sensação de estar sem a máscara também é muito simbólica, porque é a metáfora de uma libertação, de soltar o fôlego de vida preso, oprimido, que parece sair aos poucos e guardar aos muitos, dentro de nós, as diferentes expressões de resistência que se misturam enquanto seguimos aguardando o retorno natural dos encontros, todos os de antes e outros mais. Continuamos aqui, com as nossas preces e esperas, enquanto respiramos fundo o gosto de aqui estar.