Quando essa quarentena acabar, a gente vai ter tempo e motivos, sim, para abrir as portas de casa, chamar o vizinho pra comer bolo de banana com café e correr pros braços e abraços dos nossos idosos, nossos amores. Vamos raspar aquela tigela do bolo com a mão e sentar na calçada pra dividir as sobras da festa de um quarta-feira qualquer.
Logo logo, vamos limpar a casa, mas para sujá-la em seguida, ao receber os irmãos, primos, amigos, parentes e agregados que estão se guardando para quando as portas voltarem a se escancarar. Lavar as mãos depois de roubar os brigadeiros da mesa de doces, guardar os sapatos para caminhar descalço pelas areias infinitas do mar que se abre e nos espera em seu incansável vaivém.
Estamos em tempo de espera. Mas a quarentena não precisa ser só de solidão e saudades. Há espaço para abrir-se por dentro, gastar tempo com nossas certezas, nossas preces e toda a natureza de vida que há em nós, nesse tempo que é tão ambíguo, mas também amigo. Ensina, transforma. Nos ajuda a seguir. Traz, mas também leva embora.
Ficar em casa não é mais pedido. Virou apelo. Mas tornou-se também reinvenção. De si, do outro. Dos espaços da casa, da planta que há tempos cresce na janela sem ser notada, do muro grafitado que estampa a paisagem lateral, da palmeira imperial que cresce entre os prédios da minha porta dos fundos. Respiro fundo!
Já vivi em outros tempos a reclusão do mundo dos outros – claro que por motivos não tão doídos. Tempos de espera por outros tempos. Deu tudo certo. Tanto vivi em mim que sobrevivi. Virei gente tão feliz que os motivos daquelas "quarentenas", às vezes, até passam despercebidos entre as batidas do peito. Porque o porvir daqueles tempos hoje é, literalmente, um presente pra mim.
Neste tempo atual, em que o mundo precisa seguir uma quarentena, e tudo é tão dolorido e doloroso, volto no tempo e revivo os dias de reclusão no quarto lilás de abajur com a luz amarelada. Imersa entre diários, poesia e letra de música, eu me encontrava porque me aventurava demais. Eu tinha muito tempo para gastar em casa. Eram meus melhores dias. Sem sair do lugar. Não era preciso.
Hoje, luto e tento ultrapassar os medos de agora, sigo acumulando beijos, suspiros e saudades. A vontade de viver, de ver os outros vivos, espertos, mas guardados, bem guardados em suas casas, seus quartos, permanece. Nesse tempo de agora, quero mais é ter esperança e cultivar a gratidão aos que escutam os meus, os nossos apelos: fiquem em casa e guardem meus abraços para quando a quarentena a acabar.