Nada cabe em mim. Alívio!

Palavras foram caladas pra não transbordarem as nossas revoluções

Quando eu era adolescente, ia às compras de fim de ano com meu pai, uma irmã é um irmão. Era dia de multiplicar parcelas do cartão de crédito dele. E também a sua paciência, simplesmente porque roupa nenhuma se ajustava ao meu corpo. Fossem looks de menina ou trajes de mulher. Naquela época , eu pensava: "nada cabe em mim". Hoje, olhando de longe - mas de dentro - percebo que, na verdade, eu já não cabia na miudeza de uns mundos. 

Duas décadas se passaram e, agora, eu sinto como se as nossas roupas talvez sejam as metáforas da cronologia dos nossos tempos. A gente vai vivendo, descobrindo não apenas os nossos corpos, mas a forma como estão dispostos na sociedade sem que, muitas vezes, as nossas almas sejam a parte mais relevante da existência mútua dos seres. E a memória se divide entre o que fomos, o que somos e a forma como nos percebemos enquanto seres de vida. No seio social. Porque o olhar do outro passa a ser problema nosso. E o olhar pro outro?

O tempo passa e nossos dilemas se misturam enquanto seres individuais e sociais que somos; as crises se multiplicam. Passado, presente e porvir se confundem, no curso do tempo coletivo. Nos deparamos com a crise social. Depois, a política; a crise da democracia. As diferenças entre igualdades. A solidão dos corpos pelas ruas. As madrugadas de quem não tem berço. A disputa por verdades que pouco contemplam. Nosso universo foi se amiudando tanto que passou a não caber na imensidão de nós. É tanto vice-versa nessa história...

Nesses cenários de compensações, nossas almas inquietas se abalaram. Não sabiam mais onde se encaixar, já que nossos corpos, reclusos de si, pareciam querer fazer de tudo para caber num mundo tão ínfimo. Espremeram-se em nós sentimentos, saudades. Palavras foram caladas pra não transbordarem as nossas revoluções. De fato, nossos contrários haviam encontrado seus acessos. De novo, vice-versa... 

Latentes, nossos corações também espremeram-se, economizando emoções. Afetos foram guardados para não florescer. Sumiram as boas expectativas porque também foi nos convocado a fecharmos os olhos. Obedecemos, e nosso silêncio se fez violência em outros corpos, outras almas. Existências além, mas profundamente ligadas aos que somos. Sempre fomos. As culpas não salvam, nem adianta tentar. É perda de tempo, de vida, até. 

Criaram tantas desigualdades, nomes e cores, como se fosse preciso nos diferenciar, atacando, assim, as dissemelhanças que nos são tão naturais. Narrativas além das palavras. Costuraram roupas que atravessaram-nos sem as nossas permissões. Então, nos disseram o que sentir, o que fazer, pra onde seguir e como nos vermos. Tanto que já não sabíamos mais a diferença entre a dor das agulhadas e a delícia de estarmos agasalhados. Porque sentir é secundário. Faz sentido?