Contra o racismo, é preciso generalizar

Legenda: Em entrevista ao Fantástico, Bruno Gagliasso e Giovanna Ewbank contaram que uma mulher branca chamou as crianças de “pretos imundos" e disse que “voltassem para a África” porque Portugal não “é lugar" para eles
Foto: Reprodução/Instagram

O presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, afirmou que “qualquer comportamento racista ou xenófobo é condenável e intolerável, e deve ser devidamente punido, seja qual for a vítima”.

A declaração foi feita em nota publicada no site da presidência da república nesta segunda-feira (1º), sem citar diretamente o caso de racismo contra os filhos mais velhos de Giovanna Ewbank e Bruno Gagliasso registrado no último sábado, enquanto a família estava em um restaurante numa praia portuguesa.

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Em entrevista ao Fantástico, os atores contaram que uma mulher branca chamou as crianças de “pretos imundos" e disse que “voltassem para a África” porque Portugal não “é lugar" para eles. As agressões também foram dirigidas a uma família angolana que estava no local. Os vídeos com a reação de Giovanna Ewbank defendendo os filhos e o momento em que a agressora é detida pela polícia viralizaram e trouxeram à tona - mais uma vez - discussões sobre o racismo existente em Portugal.

Ainda na nota, Marcelo Rebelo de Sousa fala sobre a mistura de “origens” que forma Portugal. “A sociedade portuguesa é constituída por pessoas das mais variadas origens, que aqui chegaram há poucos ou há muitos anos, alguns há séculos, aqui vivem, trabalham, constituem as suas famílias: não há ‘portugueses puros’, somos todos descendentes de culturas, civilizações e origens muito diversas”.

Para o presidente, “não vale a pena negar que há, infelizmente, setores racistas e xenófobos entre nós, mas não se pode, nem deve, generalizar, pois o comportamento da sociedade portuguesa é, em regra, respeitador dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana”.

Portugal e as questões raciais

A abordagem de Marcelo Rebelo de Sousa é apenas um paliativo cerimonial diante de mais um caso que mostra que, embora respeitador dos direitos e dignidade das pessoas, Portugal é um país com sérios problemas para lidar com as questões raciais. O argumento de que “não se pode generalizar” seria válido não fossem os séculos de escravidão. Aqui, presidente, deve-se, sim, generalizar.

Em dezembro do ano passado, o Grupo de Trabalho de Especialistas da ONU sobre Afrodescendentes esteve em Portugal, a convite do governo, para uma missão de análise. O grupo apresentou um relatório preliminar com indícios de violação de direitos humanos de pessoas negras no país. O documento tem 85 pontos e fala sobre violência policial, abuso de autoridade e racismo sistêmico contra afrodescendentes. O motivo? Um “problema de identidade”, conforme me explicou, em entrevista na época, a chefe do grupo, Dominique Day.

Dominique me expôs de forma clara a origem do problema. “A identidade portuguesa persiste em estar conectada com a valorização da colonização e o papel dela no tráfico de escravos. Essa ideia de que os portugueses foram bem sucedidos é definida por esse período colonial sem referências às atrocidades raciais, ao quão abomináveis muitas ações foram para os afrodescendentes e para os próprios portugueses”.

Herança colonial

Generalizar, nesse caso, é pensar em conjunto. Se a sociedade portuguesa entende, conjuntamente, que o país teve um êxito memorável durante a época das grandes navegações, por que não generalizar e pensar em conjunto sobre o fato de que pessoas negras são discriminadas até hoje por causa da herança colonial?

Quando paramos para refletir que só na década de 1970 Portugal deixou de ter colônias na África, entendemos o quão fresco e presente ainda está o papel de colonizador. Em expressões como “eu não tenho nada contra pretos, nasci em Angola”, saída da boca de uma portuguesa branca - eu ouvi - vemos que a sociedade portuguesa ainda não mudou a mentalidade.

O relatório dos especialistas da ONU tem cerca de 40 propostas para que Portugal combata o racismo e a xenofobia. Sugestões que vão desde investigações independentes sobre casos de violência policial até mudanças no currículo escolar para que o papel do país no tráfico de escravos seja reconhecido.

A quem interessar possa: Portugal não tem nenhum monumento que aborde este pedaço da história com o devido reconhecimento às vítimas, em contraste com os centenas que glorificam reis e outros nobres da monarquia.

Memorial

Em 2017, a construção de um memorial em homenagem às vítimas da escravatura foi aprovada no orçamento participativo de Lisboa. Em 2020, a Câmara Municipal (equivalente à prefeitura) até listou o projeto no site. A gestão na época era de Fernando Medina, do Partido Socialista, hoje ministro das Finanças de Portugal.

Em setembro de 2021, um novo prefeito foi eleito. Dois meses depois de tomar posse, Carlos Moedas, do Partido Social Democrata, se reuniu com correspondentes estrangeiros baseados em Portugal para uma coletiva. Foi questionado sobre o memorial, mas disse ainda não estar bem a par do projeto - compreensível - e prometeu uma resposta atualizada para breve. Até hoje, ela não chegou.

Temos aqui um caso interessante de concordância entre atores de diferentes espectros políticos, a definição da palavra “prioridade”.

Segundo o Relatório da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial de 2020, o mais recente, houve aumento de 50,2% de queixas em relação a 2019. Das 655 denúncias que a entidade recebeu em 2020 só 5% resultaram em algum processo. “Reconhece-se que os números não representam o universo real da problemática da discriminação racial e étnica no contexto nacional, pelo que, a prevenção, dissuasão e punição das práticas discriminatórias constituem, ainda, um desafio permanente”, lê-se no documento.

O relatório final dos especialistas da ONU sobre a situação em Portugal vai ser apresentado no próximo mês de setembro no Conselho de Direitos Humanos. Até lá, a gente pode ter uma atualização sobre o memorial, ou mais um caso de racismo pode acontecer. O que não se pode deixar de fazer até lá, e até quando for necessário, é generalizar.

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora

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