Por que a isenção de impostos da carne na Reforma Tributária pode não beneficiar você

Legenda: Após impasse, a carne bovina foi zerada de imposto na Reforma Tributária
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O monstro Frankenstein, personagem fictício da obra clássica da escritora britânica Mary Shelley (1797-1851), virou uma analogia comum para algo que se tornou horrendo de tão remendado. É quase inevitável usar esse clichê para sintetizar o processo de aprovação da Reforma Tributária

A redação final, regulamentada no último dia 10, virou um Frankenstein. Do setor imobiliário, loteria, times de futebol ao agronegócio, já não é fácil contabilizar quantos segmentos econômicos conseguiram tratamento diferenciado. 

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Em vez de interromper os privilégios de um sistema tributário feito por e para homens brancos, há quatro décadas, na verdade, a Reforma Tributária prevê diversas concessões para os próprios. 

Em alguns casos, a demanda setorial foi apoiada pela sociedade, cuja visão estava nublada pelo argumento de uma possível elevação do preço de determinado produto ou serviço. Recentemente, por exemplo, a carne bovina havia ficado de fora da cesta básica zerada de alíquota.

O agronegócio fez aquele alvoroço, como o manifesto assinado pela Associação Brasileira de Frigoríficos (Abrafrigo) e pela União Nacional da Indústria e Empresas da Carne (Uniec). A pressão foi enorme, e o discurso não podia ser mais apelativo: o pobre merece comer esse alimento.

Anacronicamente fincado em 2003, o presidente Lula (PT) endossou o coro. O governo ficou encurralado. Não teve jeito. A carne passou a compor a cesta básica a todo custo (a inclusão irá gerar o aumento dos novos impostos). A vitória até pareceu do povo, mas foi mesmo é para a conta do agro. 

Quem consome o alimento com frequência até poderá ser beneficiado, mas o público consumidor desse produto não é o mais desfavorecido.

Será que programas de transferência de renda, o próprio cashback previsto no novo sistema e outras políticas públicas voltadas para promover mobilidade social não colocariam o bife no prato das populações realmente de menor poder aquisitivo? Era mesmo necessário o setor que mais desmata no Brasil ser desonerado para o pobre ter acesso à carne? 

Vale lembrar: o mercado é livre para praticar os preços. Ou seja, o governo terá de fiscalizar intensamente para garantir o repasse de corte do tributo para o comprador final. Outro ponto importante: os pobres são as principais vítimas das mudanças climáticas, as quais são intensificadas devido à emissão de carbono (CO₂) de diversos setores. 

Para se ter ideia, segundo pesquisadores do Sistema de Estimativa de Emissões de Gases de Efeito Estufa (Seeg), indiretamente, em razão do desmatamento, a produção da carne bovina foi a que mais contribuiu com as emissões de CO₂, totalizando 78% das emissões. 

Como as empresas podem contribuir positivamente como a reforma e a sociedade

Sigla ESG
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Isso posto, é pelo menos curioso como o empresariado faz rebuliço quando está interessado em lucrar e não pagar impostos, mas silencia diante de atrocidades, como a taxação das armas, cuja carga tributária não passará pelo imposto seletivo (cobrança aumentará a carga de bens e serviços prejudiciais à saúde e ao meio ambiente). 

Onde estão as empresas adeptas do ‘pink money’ (dinheiro rosa) e do ‘pinx tax’ (taxa rosa) para se manifestar contra as armas que matam, diariamente, seus clientes? Só se posicionam no Dia do Orgulho e no Dia da Mulher?

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Até o momento, nem um empresário apareceu para articular essa pauta. O trabalho ficou para um grupo de 22 tributaristas especialistas em questões de gênero da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Essas mulheres lutam, nas redes sociais e no Congresso, para incluir armamentos no imposto seletivo, com a campanha “Taxar armas como flores é cultivar violência com o preço da paz”.

Segundo a professora de Direito Tributário e Finanças Públicas da Escola de Direito da FGV, Tathiane Piscitelli, a inclusão não geraria o aumento da carga tributária. “Esses bens, hoje, já são tributados de acordo com as externalidades negativas que geram - as alíquotas PIS, Cofins, ICMS e IPI somadas resultam em, aproximadamente, 89,5%”, explicou, em uma rede social. 

O grupo de tributaristas está dando o exemplo e já conseguiu o apoio do vice-presidente Geraldo Alckmin. Acompanhemos como os setores irão (ou não) se movimentar a partir de agora para essa e outras pautas.

A Reforma Tributária é um projeto de País a longo prazo. Nesse contexto, é necessária governança pública, mas os empresários também têm um papel importante em relação às mudanças estruturais, sobretudo para abdicar das vantagens e pressionar por melhorias para a população.  

Veja o resumo de alguns conceitos e termos 10 pontos para entender



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