Sentir o gosto da comida sem agrotóxico: 'não tenho coragem de usar veneno e levar pra minha mesa'

Numa comunidade do sertão em que a maioria das famílias não têm terras próprias, um grupo de cerca de dez agricultores se envolve na produção de arroz num modelo que lhes permitiu abrir mão de agrotóxicos e comer sem veneno pela primeira vez

Legenda: Um grupo de cerca de dez agricultores se envolve na produção de arroz num modelo que lhes permitiu abrir mão de agrotóxicos e comer sem veneno pela primeira vez
Foto: Acervo pessoal

Eles não têm terra própria. Viveram boa parte da vida no sítio São Vicente, em Cedro, sob uma lógica que se repete por todo o sertão: moradores da terra dos outros, trabalhavam durante a semana para o patrão em troca de casa e uma terra para plantar. O tempo de cuidar da própria roça era só o fim de semana. Por isso, era difícil conseguir cuidar da terra e do mato para que os legumes brotassem sem usar o veneno.

Quando souberam que a agricultora Silmara Férrer buscava gente para construir um arrozal e dividir a produção, não levaram fé. Pelo menos não até verem a plantação crescer a ponto de chamar a atenção da vizinhança. Alguns então decidiram experimentar aquela nova proposta. Plantaram e colheram arroz sem usar muito maquinário, mas com tempo para trabalhar realmente na roça. Cuidar. Só assim, depois de tantos anos, conseguiram comer sem veneno.

Agricultor na produção
Legenda: O agricultor José Robson Cosme Ferreira, que mora há 18 anos no sítio São Vicente
Foto: Acervo pessoal

"A gente não plantava da forma que consegue plantar hoje, sem veneno", conta o agricultor José Robson Cosme Ferreira, que mora há 18 anos no sítio São Vicente. "Ter o alimento sadio é outra coisa. Mudou o gosto da comida", diz o agricultor de 33 anos. Ele reconhece que usar o veneno facilita o trabalho de cuidar dos bichos que ameaçam a roça, mas não tem bem maior que a saúde. E, num país que usa tanto agrotóxico, comer sem veneno é privilégio. 

Ele conta que sua função é produzir arroz no inverno chuvoso, mas desde o ano passado eles ampliaram a roça para plantar também feijão e milho, o que tem melhorado a alimentação deles. "Não tenho mais coragem de usar veneno e levar alimento assim pra minha mesa", acrescenta.

O "Nosso Arroz" está longe dos supermercados, mas perto o suficiente de encontros que agricultores estão construindo em pleno sertão. Era um sonho de Silmara para o futuro de sua aposentadoria, não fosse o espanto com as terras abandonadas que viu no sítio São Vicente, onde cresceu achando que plantar e colher é festa.

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Ela seguiu o fluxo comum dos mais abastados do interior: migrar para estudar em Fortaleza na adolescência. Mas nunca deixou de lado a paixão pelo plantio artesanal que viu na infância. Também nunca esqueceu de como a mãe, Isa, mergulhou nos movimentos populares da igreja e na luta camponesa. Era para sua casa que muitos iam ditar palavras de saudade a serem escritas em cartas aos parentes que haviam ido tentar a vida em São Paulo.

Depois de anos distante daquelas terras, Silmara voltou quando a mãe faleceu e se assustou com o abandono. "Aquilo me deixou muito triste", lembra. "Sempre vi produzirem milho e feijão em abundância. Fiquei chocada". Ela conta que decidiu então fazer algo. Preparou as terras para plantar, fez roça de arroz e tratou de chegar a uma conta que julgasse justa para os agricultores que fossem trabalhar com ela. E tem visto crescer, junto com seu arroz, a geração de renda, trabalho e esperança.

"Agricultura não é sofrimento, é renascimento", diz Silmara. Ciente de que "tudo pode parar, menos a alimentação", eles resolveram doar 10% do arroz produzido sem veneno para as cozinhas solidárias. Querem fazer com que cada vez mais gente conheça o sabor da comida sem veneno, a ter acesso ao alimento que sai da terra para o prato.

Legenda: Silmara se juntou a agricultores da região para tornar as terras de sua família novamente produtivas
Foto: Acervo pessoal

Nially Araújo Silveira, de 23 anos, estava a ponto de trocar o campo pela cidade, quando viu na produção de arroz a chance de continuar no seu lugar. "Eu ia embora procurar uma oportunidade", conta. Decidiu se agarrar à chance pela produção orgânica, a qual seu pai se associou depois durante a colheita. E foi, de certa forma, salva pelos orgânicos. Hoje, ela trabalha na parte administrativa junto aos agricultores.

Por enquanto, os quatro hectares de terra da família de Silmara rende apenas 70 a 80 sacas de arroz. Mas com ele, ela viaja o Ceará e desembarca semanalmente na feira de orgânicos do Parque Adahil Barreto, em Fortaleza. "A gente gosta de contar a história do nosso arroz", ela diz.

Legenda: Por enquanto, os quatro hectares de terra da família de Silmara rende apenas 70 a 80 sacas de arroz
Foto: Acervo pessoal

Lá, sempre tem alguém compartilhando o caminho do Nosso Arroz e promovendo mais encontros. O sonho para os próximos anos é apresentar o São Vicente como um grande laboratório a pesquisadores e chefs de cozinha. "Sertão é um lugar tão puro de essência que deve ser falado e compartilhado em experiências o máximo que puder", finaliza.

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