Há algumas semanas, recebemos no WhatsApp uma espécie de “lista suja” de babás e domésticas do Ceará. Quem enviou trazia indignação com uma relação que continha mais de uma centena de nomes de trabalhadoras e dados sensíveis delas, como o RG e o CPF, às vezes até o nome da mãe.
Ao lado, os motivos pelos quais elas não seriam recomendáveis para contratação: “bipolar”, “descompensada”, “macumbeira”, “mente”, “sai falando mal da patroa”, “é suja”, “coloca a patroa na Justiça”, “furta”, “é golpista”.
A lista traz acusações de furto e maus tratos - e aqui não entramos no mérito delas por serem impossíveis de serem checadas com as informações disponíveis. Mas, para além disso, a “lista suja” desvela um emaranhado de preconceitos e diz muito sobre os tempos em que vivemos.
Dez anos depois de a legislação brasileira enfim reconhecer as domésticas - a maioria mulheres - como trabalhadoras com direitos, parte da sociedade ainda se recusa a vê-las como tal. Essas listas discriminatórias são uma prova disso e lhes tiram o direito até da própria privacidade.
O problema não é só do Ceará, mas do Brasil. Há uma semana, o Repórter Brasil publicou a reportagem “‘Mora com pai de santo’: patroas criam ‘lista suja’ contra domésticas” e lançou luzes sobre essas listas que circulam em vários grupos na internet. Lá, há detalhes de parte do conteúdo difamatório repassado pelas patroas sobre funcionárias de condomínios de luxo de São Paulo. Lá, o Ministério Público do Trabalho realizou uma operação de fiscalização.
No Ceará, listas semelhantes circulam em vários grupos, repletas de intolerância religiosa e preconceitos, expondo até mesmo hábitos das trabalhadoras, como usar aplicativos de paquera, ter namorado ou fumar. Uma parte da vida privada que não costuma ser apontada desta forma em outras profissões.
Se ter a ambição de ganhar melhor e crescer profissionalmente é vista em algumas áreas como algo positivo, nestas listas o adjetivo figura como um problema. “Disse que a mãe estava doente, mas depois descobri que arrumou um emprego para ganhar mais”. Não teriam as domésticas também o direito de quererem ser bem remuneradas, de se arrumarem e de viverem com dignidade?
Um dos tópicos mais repetidos para não recomendar a contratação das mulheres que estão na lista é o fato de terem reclamado seus direitos trabalhistas. E aí há outro ponto importante nesta equação: as patroas dizem que várias trabalhadoras pedem para que sua carteira não seja assinada para não perder os benefícios de transferência de renda do Governo como o Bolsa Família, que só permite o acúmulo quando a renda familiar por pessoa não exceda 218 reais.
Chama atenção que os questionamentos feitos não passam exatamente por se há alguma ilegalidade na prática, mas na crítica a uma “ambição” apontada nas tais listas.
Ver essas funcionárias como detentoras de direitos é crucial inclusive para cobrá-las pela execução plena do serviço, como ocorre nas demais profissões. Sem isso, continuaremos distantes da qualificação profissional e presos numa sociedade discriminatória. É como diz a doutora em Direito do Trabalho Ana Virginia Moreira Gomes: “Para se pensar em como melhorar as condições do trabalho doméstico, faz parte repensarmos o valor do cuidado. É uma responsabilidade de todos”.
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