O que a cosmovisão guarani nos ensina sobre os compromissos com quem somos

A pesquisadora indígena Sandra Benites defende a importância de "acordar a memória" em uma ideia que não significa ficar no passado, mas ativar-se para saber o que é importante levar para o futuro

Legenda: A a indígena guarani nhandewa Sandra Benites diz que memória é pele, maior órgão do corpo humano. Feita de muitas camadas, acomoda o bom e o mau do nosso percurso pessoal e coletivo.
Foto: Rodrigo Avelar

Memória é pele e também é chão, aprendi com a indígena guarani nhandewa Sandra Benites recentemente. Uma mulher de cabelos negros longos que, em um português simples, traduz a complexa cosmovisão de um povo que acorda a memória cotidianamente para resistir e existir. Sandra inspira. E ensina sobre as muitas camadas que nos ajudam a estabelecer os compromissos inegociáveis com quem somos. 

Sandra diz que memória é pele, maior órgão do corpo humano. Feita de muitas camadas, acomoda o bom e o mau do nosso percurso pessoal e coletivo. Nela, cabe do genocídio indígena às violências, mas também o modo de vida ancestral e a habilidade de ler a natureza. O entendimento de fazer parte dela. Da arte que acompanha todo o processo para pescar, caçar ou pegar matéria prima para construir uma escultura, por exemplo.

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Memória, ela diz, é quem somos nós. Por isso, é também nosso chão. Entendi que memória é como uma bússola ou mapa, que nos guia sobre o que para nós pode ser negociável e o que não é.

"A ideia de acordar a memória não é ficar no passado nem agarrar-se às camadas de lembranças ruins, mas ativar-se para saber o que é importante levar para o futuro", disse Sandra Benites em uma aula aberta na semana passada.

Voz atuante no movimento feminista indígena e curadora a desbravar espaços para levar a cosmovisão a museus e institutos culturais, Sandra sabe que, para fazer parte de um lugar estranho -cuja elaboração do pensamento é diferente do seu povo-, é preciso pensar no que levar e adquirir. Não é uma ideia de troca, mas de encontro. "Nossa trajetória e nosso lugar é muito importante para que a gente possa se encontrar de verdade", explica.

Acordar a memória é entender-se bem. É retornar ao passado para compreender a própria história. Não abrir mão de suas narrativas, tantas vezes silenciadas pela história oficial. "Quando falo de mim, estou falando do coletivo enquanto mulher e enquanto povo guarani. Estou falando de outro lugar", ela diz. Acordar a memória é honrar este lugar. Saber a necessidade de ocupar certos espaços, mas saber proteger-se das possibilidades de quebrar-se. “Não vou me despedaçar para fazer como vocês querem. Não aceito preencher a lacuna da cota: ou é ou não é”, ela deixa claro.

Acordar a memória é este compromisso inegociável com quem somos - um pensamento guarani que me tocou em tantos lugares que quis vir compartilhar com você, leitor. Que Sandra Benites, com seu português simples e sua visão profunda sobre o mundo, também te inspire. Afinal, memória é nossa pele, mas também é nosso chão.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora. 

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