Marcelo e a ousadia da paciência

Um pai que ousou desacelerar o mundo para cuidar da família se despede da vida com a força de um gigante

Escrito por
Beatriz Jucá ceara@svm.com.br
(Atualizado às 18:39)
Legenda: Marcelo Pereira Fernandes era ponto de refúgio e de mediação entre tantas mulheres que o rodeavam
Foto: Arquivo Pessoal

Todos os dias, Marcelo Pereira Fernandes levantava às cinco horas da manhã e ia até a padaria comprar pão fresquinho. Voltava, fazia o café e colocava a mesa para a família e quem mais pudesse aparecer. Era como um ritual de quem parecia viver em outro tempo, sem pressa. Seu mundo era de calma e tranquilidade. Ao recusar o caos que o mundo nos oferece diariamente, ensinava a ousadia que é desacelerar e focar no que de fato importa na vida.

Marcelo viveu rodeado de mulheres. Decidiu deixar São Paulo e uma noiva quando encontrou uma mulher de nome grande por quem se apaixonou. Com Maria Etelvina Antonieta Dulce, teve três filhas. Mas foi pai também da neta e, algumas vezes, até mesmo das sobrinhas. Era ponto de refúgio e de mediação entre tantas mulheres que o rodeavam. A calmaria no meio do caos. Tinha toda a paciência do mundo - tanta que muitas vezes nem percebia o carro pedindo marcha. Ops, esqueceu de mudar.

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Quando vieram os primeiros netos - dois meninos-, enfim virou avô. Mas foi um avô tão diferente que na verdade deixou de ser pai para ser amigo. Aliás, é assim que um dos netos costumava lhe chamar: “oi, amigão".

Mas no fundo, Marcelo assumiu mesmo foi o papel de pai. Das filhas, dos netos, das sobrinhas. Sou uma dessas sobrinhas que ele adotou. Na infância e na adolescência, ele nos levava para a praia, nos buscava nas festas, nos comprava CDs. Sonhava junto, fosse para fazer uma apresentação das Spice Girls no shopping ou para acompanhar o resultado do vestibular.

Não parecia haver diferenciação entre nós e suas filhas de sangue. Marcelo diferenciava os nossos erros de adolescentes com a generosidade que era justificá-los como “fruto da idade”. Sempre celebrou nossas pequenas grandes conquistas. Era assim com todos nós, a família primeira e a estendida.

Gostava de falar sobre futebol e ver o noticiário na TV. Tinha um carinho especial pelos animais, um trato um tanto engraçado com Tobias, uma calopsita cheia de vontades que vivia na área de sua casa. A mesma área onde passei boa parte da vida brincando, conversando e errando a reza do terço pelo nervosismo em véspera de vestibular.

Marcelo é retrato de paciência, soubemos a vida toda. Mas nos últimos anos - e especialmente nos últimos meses - ele mostrou que era também força. Nesta semana, descansou depois de uma longa batalha contra o câncer. Na despedida, ouvi de muita gente: “nunca vi alguém tão forte”. Nem eu. Compartilho a história dele com vocês porque é daquelas existências que valem a pena, que nos faz acreditar em um mundo mais generoso e paciente. Um mundo menos veloz que nos permita focar no que é mais precioso: o nosso povo.

 
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