O meu adeus para Ziraldo, pai do Menino Maluquinho

Ziraldo marcou gerações, ilustrando, traço-a-traço, seus palpites sobre mundo, política, educação e vida

Legenda: Ziraldo tornou-se um pouco pai das crianças brasileiras, que adotaram o Menino Maluquinho como irmão pela inspiração de alegria e travessura
Foto: Divulgação

Era abril de 2010. Eu o vi com suas sobrancelhas e cabelos muito brancos, sentado em um restaurante cuja parede de vidro dava para o mar verde de Fortaleza. Era apenas uma estudante de jornalismo com muita curiosidade e pouca experiência em entrevistas. Tinha medo de fazer perguntas erradas para o pai do Menino Maluquinho, personagem que havia marcado a infância da minha geração. Mas Ziraldo recebeu com carinho aquele grupo de estudantes empenhados em fazer o seu melhor para a saudosa Revista Entrevista, um projeto do professor Ronaldo Salgado na Universidade Federal do Ceará.

Quando soube da partida de Ziraldo, encontrei também as linhas que escrevi há 14 anos, naquele encontro. Nelas, me aproximei de outros 46 Ziraldos. E é com elas que agora dou este adeus ao pai do Menino Maluquinho. O homem obcecado por desenhar deixou seus traços para a eternidade.

É que as mãos, desencontradas da caneta, delineiam suas palavras no ar. Os gestos exagerados que desenvolve enquanto fala precedem a obsessão para realizar o sonho de desenhar. E assim Ziraldo vai ilustrando, traço-a-traço, seus palpites sobre mundo, política, educação, vida. O desenho parece ser a linha que controla sua prolixidade e o escoamento do sincretismo que o envolve.

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Ziraldo tem opinião sobre tudo. Suas filosofias perpassam uma infinitude de assuntos, mas convergem todas para o problema educacional do País, semeando no desenhista de humor o desejo de alcançar o Ministério. Isso porque sua visão peculiar sobre a realidade é fruto de encontros com “professores maluquinhos”, que lhe incentivavam a ler e a desenvolver criticidade em épocas de ufanismo nacional e ditadura.

Seu traço evoluiu embalado pela leitura, fazendo-o crer que os livros constituem o sexto sentido para a comunicação com o mundo. Encorajado pelas obras que leu, Ziraldo reconhece que a literatura é maior que a vida, não hesitando nunca em se lançar ao sonho de publicar histórias em quadrinhos.

Ele foi para o Rio de Janeiro na época em que sua geração, em Caratinga, suspirava por Nova Iorque. A publicação do primeiro gibi, no entanto, demorou 11 anos desde sua chegada, mas a espera foi amenizada pelos trabalhos que conseguiu como chargista. A oportunidade do sonho veio entrelaçada à ânsia socialista nos tempos do governo João Goulart. O quadrinho Turma do Pererê é fruto da necessidade de histórias nacionalistas na época e da obsessão do autor, que montou a historinha em dois dias. O Pererê, interligado à política, morreu com a revolução que levou Getúlio Vargas ao poder.

Ziraldo posa para foto com uma folha, em cima de uma mesa, com o desenho do Pererê
Legenda: O quadrinho Turma do Pererê é fruto da necessidade de histórias nacionalistas na época e da obsessão do autor, que montou a historinha em dois dias
Foto: Divulgação

A partir daí, Ziraldo não conseguiu mais desfazer os elos entre sua história e a política brasileira. Um idealizador do revolucionário Pasquim, o desenhista foi preso três vezes durante a ditadura militar. Mas as grandes metas maximizam os sonhos, e as marcas deixadas pela censura não dificultaram a consagração do desenhista como autor infantil. Ziraldo tornou-se um pouco pai das crianças brasileiras, que adotaram o Menino Maluquinho como irmão pela inspiração de alegria e travessura.

As obras do desenhista advêm de um olhar atento que o acompanha desde a infância. Ainda menino, Ziraldo já imaginava as subjetividades por trás das cores e dos traços das antigas histórias em quadrinhos, além de despertar curiosidade em relação às ferramentas de desenho utilizadas. A aptidão artística somada à leitura o fez apaixonar-se pela narrativa, chegando a publicar mais de 140 livros.

A figura imagética de Ziraldo funde autor e personagem em um corpo cuja pele morena contrasta com cabelos brancos. Indignado, a sobrancelha espessa descende à medida que a testa é franzida. Com camisa de botão, colete, calça jeans e barba feita, o personagem Ziraldo tem como glória a mágoa de Picasso: fazer quadrinhos. E Picasso divide com Drummond o posto dos homens mais importantes da vida do cartunista.

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