Na zona rural do interior do Ceará, a Escola de Samba Unidos do Roçado de Dentro nasceu frevo há 60 anos e abraçou o samba para ressignificar o carnaval de toda uma cidade
Nasceu sem avisar, no fim de um dia comum de trabalho na roça. Faz 60 anos. Era tarde de fevereiro, em 1963, quando rebentou pelas mãos de um grupo de homens que tinham a pele marcada pela seca. Veio de gente que aprendeu o manejo do campo e da música só de ver pai e avô enterrarem semente e fazerem tocada em calçada para celebrar a boa colheita.
Nasceu do som de meninos acostumados a extrair barulho de lata, pedra e caixa de fósforo como quem tenta esgotar o som das coisas para amenizar a vida cinzenta do sítio.
Esta é a história de uma escola de samba que, na verdade, nasceu frevo. Seus primeiros passos vieram em um bloco improvisado de marchinhas cantadas por agricultores. Eles trocaram as enxadas pelos instrumentos que conseguiram reunir e saíram pelas estradas de terra batida do sítio Roçado de Dentro, comunidade rural da cidade cearense de Várzea Alegre.
Bebiam e se divertiam avançando pela terra batida, com o nível alcóolico subindo tal qual a vontade de adentrar a cidade. Tinham medo. Coragem mesmo só veio quando pintaram os rostos com carvão na esperança de não serem reconhecidos, caso a reação da cidade fosse a de ridicularizá-los.
Nada. Ninguém esperava que matuto fizesse carnaval, mas eles ousaram. Entraram na cidade, conquistaram os foliões, fizeram história.
No dia seguinte ao primeiro desfile, os agricultores do Roçado de Dentro acordaram cedo para ordenhar as vacas.
Do curral, partiram para as roças, satisfeitos pelo bom inverno e pelo carnaval, que pela primeira vez embaralhava os papéis de protagonistas e coadjuvantes em Várzea Alegre. No acocho dos matos, uma voz quase se perdia na descida da ladeira:
– Vamos nos preparar que convidaram a gente para desfilar novamente!
Já tem 60 anos que aquele pequeno grupo de agricultores saiu pelas estradelas cantando frevo. O bloco improvisado, ao longo das décadas, abraçou o samba. Depois vieram as fantasias, as alas cada vez maiores, os carros alegóricos, os samba-enredos. A bateria refinou o som, ampliou os instrumentos.
Sai neste ano vestida principalmente de saudade, especialmente dos que partiram nos últimos dois anos sem desfile por conta da pandemia.
Chiquinho, Vicente, Tim, Pedro, Antonito, Lázaro e tantos outros que fizeram esta história estarão ali, de alguma forma. Nos próximos dias, a Esurd voltará à avenida pelas mãos de filhos, netos e bisnetos deles.
Serão 800 a mil pessoas a celebrar o som da quarta geração daqueles agricultores que descobriram no samba o sentido de toda uma comunidade, que remodelaram o carnaval da cidade, hoje um dos maiores da região. Viva os mestres! Vida longa à Esurd!