A vizinha do edifício mais alto de Fortaleza

Dona Mundinha vive entre a memória do riacho e dos morros do Mucuripe e o futuro vertical de um dos bairros mais cobiçados pela especulação imobiliária na cidade

Legenda: Raimunda Alves de Sousa, de 89 anos, tenta guardar o que já foi o Mucuripe a golpes de pincel
Foto: Beatriz Jucá

Raimunda Alves de Sousa, de 89 anos, está parada entre duas janelas de um mesmo corredor na casa dela. Dali, é possível olhar para o passado e o futuro ao mesmo tempo. De um lado, uma janela se abre para o prédio mais alto da cidade – um edifício de luxo com 50 andares (ou 170 metros de altura) que deixa o corredor vertical que tomou a orla de Fortaleza parecer discreto diante do seu tamanho. Do outro, uma abertura na parede dá para a sala decorada com quadros que registram riachos e morros que existiam no Mucuripe antes da especulação imobiliária começar a varrer tudo.

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São quadros da própria Dona Mundinha, como é conhecida na vizinhança. Ela tenta guardar o que já foi o Mucuripe a golpes de pincel. “Cadê o Riacho Maceió? Desapareceu. Antes era tanta água, agora acabou. Você só sente um fedor horrível”, reclama. Então lembra do tempo que o pai, Raimundo, pescava e plantava na vazante do riacho que corta os bairros do Mucuripe e Varjota. Foi por ver tantas vezes o peixe dele ser apreendido que, desde criança, ela decidiu alçar sua voz contra o que não acha justo.

Passou anos lutando contra a especulação imobiliária e a remoção de moradores na vizinhança, mas agora, beirando os 90 anos, se vê impotente. “Fico triste em ver tanto prédio, mas aceito. Parece que a vida é assim mesmo, que o tempo muda. Talvez um dia eu vá embora também”, diz. O Mucuripe dos morros, dos rios, do mar cheio de pescador e jangada, das rendeiras de labirinto e das brincadeiras de natal ela achou um jeito de preservar nos seus quadros coloridos. Não é tarefa fácil. 

Moradora está ao lado do prédio mais alto da cidade
Legenda: A sala é decorada com quadros que registram riachos e morros que existiam no Mucuripe antes da especulação imobiliária começar a varrer tudo
Foto: Beatriz Jucá

Dona Mundinha nunca viveu em outro bairro. Na juventude, devorava livros e decorava palavras difíceis do dicionário para “falar bonito”. Enquanto a cidade estigmatizava o Mucuripe como lugar de pobre e bandido, ela queria mostrar que quem vivia ali também era importante.

Dona Mundinha diz que foi criada com a liberdade dos jovens de hoje. “E hoje parece que vivo no dia de amanhã”, diz. Um símbolo deste amanhã está logo ali, do outro lado da janela. No prédio mais alto da cidade, que furou o limite de 95 metros de altura estabelecido pelo Plano Diretor graças a um dispositivo chamado Outorga Onerosa. Por meio dele, o construtor pode pedir à Prefeitura mudanças de alguns limites e pagar ao poder público para fazer essa alteração dentro da lei.

Moradora está ao lado do prédio mais alto de Fortaleza
Legenda: Na casa de Dona Mundinha, uma janela se abre para o prédio mais alto da cidade – um edifício de luxo com 50 andares (ou 170 metros de altura)
Foto: Beatriz Jucá

“Aquele tempo das árvores e dos rios foi um. Este é outro. O que eu posso fazer?”, pergunta Dona Mundinha. Ela precisou conviver com o futuro vertical que se alastra pela orla de Fortaleza desde os anos 1970. Agora, parece conformada com o mundo que não pôde mudar. Sabe que, aos 89 anos, já não tem a mesma energia para bater de frente com forças tão desiguais.

“Vi muita gente do meu tempo se achar velha. Eu não me acho velha. Pra mim, velhice é a pior coisa do mundo. Sei que não tenho mais condição de nada. Sinto dor no corpo, mas continuo vendo as coisas como são. Meu corpo envelheceu, a cabeça não”, ela diz.