Tudo se urbanizou, menos os lugares da (minha) memória

Nossas lembranças nos fazem cartografar e identificar, no mapa mental, um lugar, produto da realidade e da imaginação

Legenda: As casas eram compridas e associadas à roça. De taipa, elas tinham o teto baixo, com janelas e portas pequenas, mas deveras aconchegantes.
Foto: Foto: Melquíades Júnior / SVM

Nas minhas memórias, há um lugar de natureza simples, sem paisagens exuberantes, nem montes e nem depressões. Um vilarejo de pouca gente, de casas que pontilhavam e seguiam o serpentear das veredas.

Pela vereda, outrora passava a carga, o burro e o seu dono. Lembramos de um lugar sem muros, onde nos conhecíamos e tínhamos um passado em comum. Eram histórias do pouco gado, da mandioca e do feijão. A economia era o conhecimento passado de pai para filho e tinha um nome: sobrevivência.

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Entre córregos intermitentes, o povoamento se consolidou. Esses recursos hídricos, ao longo do tempo, serviram para o abastecimento de água potável e para a plantação. Com terras mais férteis, nelas plantou-se cana-de-açúcar, capim, batata doce, mandioca e outras culturas que não mais lembramos. Infelizmente, muitos córregos deixaram de "correr", sobretudo pelos aterros, ocupações impróprias e desmatamento.

Os córregos eram apelidados de "levadas". Lá, em tempos de boas chuvas, crianças brincavam, banhavam-se, enquanto suas mães lavavam as roupas e outros utensílios domésticos. Eram perturbações ambientais, mas, não sabíamos! Afinal e no final, a água que bebíamos era da cacimba, era pote, tratada pelo filtro de barro.

As casas eram compridas e associadas à roça. De taipa, elas tinham o teto baixo, com janelas e portas pequenas, mas deveras aconchegantes. À sombra da mangueira, todos se reuniam e falavam, às vezes, à luz de lamparina e tudo ficava mais animado no tempo da farinhada (colheita da mandioca).

As casas de farinha marcaram fortemente a paisagem e o cotidiano do nosso povoado. Eram muito mais que uma fábrica de farinha, de goma e de tapioca. Esses monumentos eram espaços de convivência e de festa.

O momento da colheita da mandioca e todo o processo de farinhada representavam o encontro e partilha entre familiares. Com a decadência da produção, as casas de farinha, pouco a pouco, deixaram de existir.

Mas não só de farinha vive o homem, há também a rapadura. Os engenhos de rapadura faziam parte da paisagem e principalmente da riqueza das famílias. O doce de cana já foi um produto importante fabricado na nossa comunidade. Eram muitos os engenhos. As famílias com mais recursos montavam o seu. Era a "indústria", juntamente com as casas de farinha, que funcionava no pequeno vilarejo.

Além da produção na terra, tínhamos os comércios, tantas e humildes, de prateleiras semivazias e sem muita novidade. Hoje chamadas de mercadinhos, as bodegas são marcos de identificação e sociabilidade no lugar. Elas sempre foram reconhecidas pela história, pela localização e pelo proprietário. Hoje, a bodega ainda tem o bom e velho balcão e muitos produtos tradicionais a vender por lá.

Esse lugar, como o descrevemos, não existe mais. A urbanização o transformou. Ademais, nas memórias guardamos sensações, pensamentos, fatos e, da mesma forma, lugares. O impressionante é rever os lugares da memória e identificar que sensações, pensamentos e fatos são ressignificados sempre com doses de saudosismo.

Nossas lembranças nos fazem cartografar e identificar, no mapa mental, um lugar, produto da realidade e da imaginação, menos pela racionalidade do conhecimento e mais pela beleza das lembranças o mundo das afetividades.



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