Em 15 de março de 1877, Machado de Assis publicou mais uma de suas excelentes crônicas nos diários do Rio de Janeiro. Naquele dia, os fluminenses leram a percepção de Machado sobre a modernização da cidade carioca. A crônica foi intitulada Progresso e transmitiu o olhar do cronista acerca da transformação da cidade face a instalação dos bondes em Santa Teresa.
O grande escritor brasileiro, astuto e irônico, relatava o espírito predominante à época, sobremaneira, o sonho de um mundo transformado pelas técnicas e pela ciência, menos animal e mais mecânico. Sobre a imparável locomotiva do progresso, Machado previa: “...a queda lenta do burro, expedido de toda parte pelo vapor, como o vapor o há de ser pelo balão, e o balão pela eletricidade, a eletricidade por uma força nova...”.
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No entanto, nem sempre o vento das mudanças e as novidades técnicas foram bem aceitas. Opiniões contrárias erguiam-se frente às "maravilhas" da modernidade, entendendo-as como ameaça aos costumes dominantes. Lembre-se mesmo de Machado, cuja ironia deu voz aos burros em outra crônica a interpretar, genialmente, os efeitos do novo que se instituía. Sem a tarefa anterior, como disse o burro da direita, enfim os equinos inferiores teriam “a liberdade de apodrecer”.
Em outro contexto, o geógrafo sino-americano Yi-Fu Tuan, no texto belíssimo A cidade: sua distância da natureza, nos conduz a Birmingham, na Inglaterra, e a Colônia, na atual Alemanha. No século XIX, momento da difusão da iluminação a gás, os moradores da cidade inglesa receavam que a iluminação artificial, durante a noite, aumentasse os índices de criminalidade. Imagine só!? Exatamente o contrário do que pensamos hoje!
Por outros motivos, narra o geógrafo, os moradores de Colônia também mostravam-se descontentes com o progresso trazido pela iluminação. A imprensa veemente defendia a escuridão noturna, posto sem ela, tanto o alcoolismo como toda sorte de depravações seriam incentivadas. Não deixa de ser curiosa a relação determinista entre a escuridão e as condutas morais, mas sem nenhum argumento científico a justificar tal correlação.
Entre o entusiasmo e os temores, e sem a mesma arte dos autores citados, tenho pensado sobre a difusão do uso de câmeras filmadoras e suas “unânimes” vantagens. Hoje, elas representam parte do progresso e da tecnologia nas nossas cidades. Estes olhos eletrônicos estão em todos os cantos a nos espiar; nas calçadas, no alto dos postes e até nas nossas próprias casas. Nós mesmos, além dos olhos biológicos, carregamos um eletrônico. Acoplados aos telefones portáteis, nos tornamos quase ciborgues, capazes de registrar definitivamente o que nos vier à cabeça, seja engraçado, trágico ou curioso.
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Os entusiastas das câmeras vão, de pronto, lembrar de seu valor na prevenção aos atos violentos e no controle do patrimônio. Dirão que sem estes aparelhos, a polícia jamais solucionaria crimes, desvendaria furtos e assassinatos. Os mais partidários se apoiarão em alguns índices e dirão que graças aos olhos virtuais diminuiu-se a criminalidade aqui e alhures. Podem até dizer: “quem não tem nada a esconder, nada tem a temer”.
Por sua vez, os temerosos vão relembrar trechos do livro de Michel Foucault, Vigiar e Punir, ou mesmo, da ficção distópica 1984, de George Orwell. Os contrários mencionam que os softwares de reconhecimento facial, já bastante difundidos em certos ambientes fechados, se utilizados nas cidades e por governos ditatoriais, podem significar modelos de controle, vigilância e perseguição das liberdades individuais. As boas intenções em buscar meios para dar maior segurança aos citadinos podem transgredir o direito à privacidade ou ao anonimato.
Em relação às câmeras não se percebem debates públicos, exceto quando fato esdrúxulo vem à público. Lembro, em 2018, quando guardas de um município no Paraná se utilizaram do sistema de câmeras para visualizar mulheres de biquini caminhando na praia. Ou seja, o mau uso destes equipamentos e a captação de imagens sem o consentimento dos registrados cria situações embaraçosas e criminosas.
Os bondes e a iluminação artificial, quando surgiram, trouxeram inquietações à sociedade de seu tempo. As décadas passaram, as transformações foram amplamente assimiladas e ninguém deseja a volta dos pobres burros puxando bondes na cidade. As câmeras são um dos desafios da nossa era, a era das exposições. Em relação a esse debate, diferente de Machado, não gostaria de dar voz aos burros, mas a todo e qualquer cidadão/cidadã. Diga lá! O que vocês acham do uso das câmeras pela cidade? Mas, olhe para cima ou para o lado, talvez você esteja sendo filmado.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.