A cidade impermeabilizada sufocou sua drenagem natural; os canais e os bueiros não funcionam, pois os “cidadãos” os encheram de lixo. E a sujeira, como um felino doméstico, sempre volta para o seu dono.
No século XIX, o conhecido Karl Marx e seu amigo Friedrich Engels escreveram a frase lapidar: “tudo o que é sólido e estável se esfuma”. À ocasião, o economista e seu parceiro referiam-se a realidade em constante transformação conduzida pela batuta da revolução burguesa. Nestes últimos dias de chuva em Fortaleza, lembrei-me da frase, mas sem qualquer vínculo filosófico, muito mais pela força simbólica e por um certo bom humor contido na citação monumental.
A nossa cidade, enquanto banha-se de chuva, desmancha-se. Tudo o que funciona sob a luz do sol se esfuma ao cair das gotas d'água. Dizendo de outra forma, como Fortaleza demonstra-se despreparada para a tão esperada estação chuvosa abundante.
Ainda sob esse contexto, busquei inspiração num grande mestre da literatura. Voltei a consultar as páginas do memorável livro As Cidades Invisíveis, do gênio Ítalo Calvino. Fiquei a pensar como Marco Polo, ao passar por Fortaleza, num destes dias de eventos chuvosos extremos, descreveria a cidade de Iracema para o imperador Kublai Khan.
Talvez Polo, com toda a sua acuidade e imaginação, denominaria a cidade litorânea de urbe feita de açúcar. Isto mesmo! Como os conterrâneos dizem por aqui: “tem medo de chuva? Por um acaso é feito de açúcar?” No final das contas, acho que os fortalezenses de hoje, apesar da histórica e mitológica vaia ao sol, rezam três ou mais Ave Marias quando a chuva começa a tocar os seus telhados.
Será que sofremos de uma amnésia coletiva e, anualmente, deixamos no lixo das lembranças tudo o que transcorre na cidade durante uma pluviosidade de dezenas de milímetros? Estou começando a acreditar nesta hipótese.
Se vasculharem as notícias nos periódicos, lá estarão descritas situações deveras semelhantes, ano após ano; talvez nem sequer mudem os títulos das matérias, tamanha a semelhança dos fatos. Os semáforos param e os cruzamentos viram terra de ninguém. As ruas mal drenadas ganham forma de piscina ou lago; e os carros param, quebram e boiam. E os buracos? Aparecem por mágica e crescem tão rápido como a inflação do nosso país.
As árvores mais velhas e não podadas tombam, interrompem os fluxos, seja de veículos ou da rede elétrica. Até o sinal de internet para de funcionar. A conclusão é óbvia: nossas redes, diferente de alguns relógios, não são à prova d’água.
Os motoristas despreparados não reduzem a velocidade, não acendem os faróis e tampouco evitam acidentes. Alguns, pessimamente educados, jogam-se sobre as poças e banham os pedestres espremidos nas calçadas inundadas.
A cidade impermeabilizada sufocou sua drenagem natural; os canais e os bueiros não funcionam, pois os “cidadãos” os encheram de lixo. E a sujeira, como um felino doméstico, sempre volta para o seu dono, desta vez, conduzida pelos rios temporários.
Nos prédios, a manutenção capenga traz a fatura. São elevadores quebrados, infiltrações nas janelas e tetos desabados. As garagens alagadas nos fazem refletir se os engenheiros e os proprietários, antes de construir, pensaram no futuro chuvoso. Ficam apenas os prejuízos.
E os mais pobres, os mais vulneráveis habitantes das conhecidas áreas de risco? Lembre-se de tudo o que disse até agora e multiplique por mil. Com isso, estimamos, com alta taxa de erro, o índice de sofrimento dessas famílias que habitam em barracos à margem dos córregos e rios.
Oh, Fortaleza! Porta Atlântica do Semiárido nordestino, não esqueça das aulas de geografia. A chuva tarda, mas um dia vem. Tomara que a próxima visita de Marco Polo aconteça em outubro, mês do pleito eleitoral, e não tenhamos tantos problemas a mostrar.