Quando se perde uma boa mãe
Quem a gente irá chamar quando não tiver mais mãe? Seria preciso que toda a sociedade se tornasse um pouco mãe dos filhos uns dos outros.
A vida começa no corpo de um outro. Uma desconhecida, que ainda não vimos pelo lado de fora, não sabemos o rosto, nem nada do que possui. É muito interessante que a vida comece por dentro, no casulo, na caverna, cercado de água, feito um planetário, feito um astronauta sem traje tecnológico, sustentado pelo simples e potente: um cordão umbilical.
No início são esses dois corpos, que irão construir cultura e desejo; que irão produzir afeto, linguagem, memória, história. Do íntimo, do dentro, por nove meses, seremos conduzidos, protegidos, embalados na voz, ritmados no primeiro som de tambor do coração.
Nove meses é uma intimidade eterna. Uma conexão visceral. Uma mãe, ao nascer junto com o filho, inaugura o futuro e o mistério de uma existência totalmente nova, pronta para ser criada. Uma mãe se cria ao criar e descobre do tanto de si no espelho da sua carne.
Nem toda maternidade começa assim. Algumas seguirão outros encontros, outras descobertas, outros olhares, algumas serão as mães que escolherão onde não foi possível seguir para outras. Algumas acolherão os filhos de mães que não puderam nascer. Alguns levarão muito tempo até poderem ter uma mãe.
Quando é possível ter uma boa mãe, esse embalo e esse colo, esse olhar que sabe do íntimo, que decifra murmúrios, que ruge em proteção da cria, semeia dentro da gente uma espécie de núcleo protetivo, que contém algo inabalável, que alimenta desejo e coragem.
É incrível ter alguém que nos conhece desde sempre. É precioso quando esse olhar confirma e reconhece a nossa diferença no mundo e valida quem somos. Uma mãe é quem permite que alguém exista e se torne quem se é.
Diante do olhar de uma mãe, todos os outros valores são ressignificados. São as memórias dos aniversários, das festas na escola, das primeiras vezes, dos aprendizados e das sabedorias acumuladas e partilhadas, dos limites e imensidões do viver e dos afetos, das noites em claro sob vigília pelos motivos sérios e banais, as palpitações dos primeiros enfrentamentos, do medo de decepcionar, da necessidade de decepcionar.
São as memórias de crescer e se redescobrir, de compreender que ela também é humana e vai crescendo junto conosco. Ao crescermos, as mães saem do solo sagrado e caminham conosco no chão de nossa humanidade. A parceria se fortalece e as histórias podem ser percebidas, contadas e compreendidas.
Às vezes é preciso ter vida longa e sábia para poder compreender a história e os porquês de uma mãe. A maternidade é um modo de subjetivação que enlaça o humano na relação com a alteridade, a linguagem e o desejo.
A complexidade de uma maternidade impõe à mulher revisitar a própria história com sua mãe, lidar com as mudanças e os lutos no corpo e pela idealização do filho. Processos complexos em todos os aspectos do desenvolvimento, nem sempre vividos com apoio do ambiente.
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Uma boa mãe falha, tem defeitos, imperfeições e sabe disso. Mas não impõe a responsabilidade da sua vida sobre os filhos. Ter uma boa mãe é poder experimentar e desenvolver a confiança, a esperança, o cuidado, a criatividade, o tomar posse de si. Uma boa mãe oferece uma sensação de segurança e proteção, mesmo quando esta é ilusória e se torna ela a pessoa que precisa de cuidados.
A perda de uma boa mãe é como uma tristeza que dói todo dia, mas não paralisa, pois impulsiona a seguir. Uma saudade que vem feito brisa e de vez em quando nos chama pelo nome e projeta alguma cena do vivido junto.
Em alguns, a saudade pode virar tempestade, dor avassaladora, luto que pode precisar de cuidados mais refinados. Em outros, uma permissão para ir, para manter vivo o que dela nos constitui, o que dela é cheiro, palavra, gesto, inspiração, uma voz que diz: vai, você sabe quem é, o que pode fazer; que embala e nos autoriza ao melhor que podemos ser.
A perda de uma boa mãe deveria acontecer somente quando é possível confiar no próprio corpo para seguir. Quando se perde uma boa mãe, o tempo entre uma batida do coração e outra parece uma eternidade. Perder uma boa mãe é um desmame da alma, uma autorização para tomar conta de si e ampliar a rede de apoio.
Quem a gente irá chamar quando não tiver mais mãe? É preciso transferir a confiança para os que ficam. É preciso que fique gente que saiba cuidar. Mães não fazem curso, levam anos para refinar o ofício delicado do sentir e do agir. Seria preciso que toda a sociedade se tornasse um pouco mãe dos filhos uns dos outros.
Existem os que perdem as mães muito jovens e, para esses, deveriam existir políticas públicas robustas que, embora não supram integralmente a perda, garantirão a continuidade dos cuidados.
Os lutos nos constituem. É dessa dança entre o que vai e o que fica que vamos nos tornando quem somos.
É preciso aprender a encontrar dentro de si os cuidados vividos com a mãe para que, quando sofrermos, a memória deles nos impulsione a buscar algo parecido. Jamais será igual, mas pode fortalecer a esperança de que, se fomos amados, isto nos pertence; e que, se temos o amor dessa boa mãe enraizado em nós, seremos capazes de nos proteger e não aceitar nada menos do que aquilo que de bom vivemos e guardamos dentro de nós.
Quando a mãe física se vai, ela ecoa em algum lugar dentro de nós e nos abençoa em força e amor. E, se confiamos nisso, podemos seguir.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora.