Quando alguém se machuca, é preciso ler o pedido de ajuda nas marcas da pele

As violências contra o próprio corpo podem apresentar a denúncia da tentativa de mudar algo da realidade externa, de substituir uma dor psíquica por uma dor física

Escrito por
Alessandra Xavier Silva producaodiario@svm.com.br
Legenda: Observe se há sinais de isolamento, uso de roupas compridas, converse abertamente sobre temas em saúde mental sem preconceitos
Foto: Shutterstock

Os indicadores de sofrimento psíquico na adolescência têm aumentado significativamente nos últimos anos. O suicídio é a terceira causa de morte entre os 15 a 19 anos, e as autolesões aumentaram 29% entre os 10 e 24 anos. Existem muitas questões envolvidas nesse sofrimento: desde a precariedade de políticas públicas para adolescência, aspectos relacionados à própria precarização da vida, aumento dos indicadores de violência em suas diversas expressões, às quais muitos adolescentes estão submetidos.

Violência sexual, violência doméstica, racismo, violência de gênero, violência institucional, violência nos territórios e que interferem nas possibilidades de desenvolverem recursos psíquicos, sociais, físicos e espirituais que garantiriam maiores possibilidades de lidar com os desafios do crescer e viver; falta de preparo de profissionais e de projetos intersetoriais e intersecionais de saúde mental, pouco financiamento para fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial e enfrentamento do preconceito e estigma sobre saúde mental.

As adolescências (pois a experiência do ser adolescente irá se modificar de acordo com o território, o contexto e a cultura, configurando adolescências diferentes de acordo com a matriz cultural, as expectativas e os cuidados do ambiente), comportam inúmeros desafios:

  • o luto pelo corpo infantil (o que já impõe ao adolescente ter que lidar com pensamentos e fantasias de mudança e morte atrelados ao processo de crescimento);
  • modificação na relação com a família (maior autonomia, independência, que em muitos casos passa a se expressar como abandono e negligência familiares, ambivalência nos vínculos);
  • necessidade de participação e pertença no grupo de amigos;
  • construção de um projeto de vida e perspectiva de trabalho;
  • posicionamento subjetivo diante das questões sexuais;
  • envolvimentos amorosos com maior intimidade;
  • cobranças sociais referentes à escolha profissional;
  • dúvidas acerca da inclusão no mercado de trabalho;
  • visibilidade social;
  • recursos para lidar com os problemas da vida que passam a serem percebidos em maior complexidade. 

Diante de tantos desafios, é possível que os adolescentes expressem preocupações como as encontradas nos estudos do Nusca da Uece: preocupações relacionadas a emprego, futuro profissional, exclusão, preconceito, inseguranças sobre como lidar com as redes sociais, insegurança financeira, medo de não serem capazes de se sustentar, não atenderem às expectativas, falharem, decepcionarem, não serem amados verdadeiramente por serem quem são, não realizarem os sonhos, serem mortos, não serem amados pelos pais nem passarem de ano.

São dores muitas vezes silenciadas e que não encontram acolhimento na família, no Estado, na escola ou na comunidade. 

As violências contra o próprio corpo podem apresentar a denúncia da tentativa de mudar algo da realidade externa, de substituir uma dor psíquica por uma dor física, denunciar a existência de um sofrimento que muitas vezes só consegue ser acolhido diante de uma materialidade no corpo, porque muitas vezes, são dores comunicadas, mas não escutadas nem percebidas.

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Muitas pessoas esquecem que adolescentes estão em processo de desenvolvimento e que embora possam saber de muitas coisas, conseguir expressar e traduzir emoções complexas, não é fácil, inclusive para muitos adultos e idosos.

Identificar, expressar o que se sente e poder encontrar outras alternativas para os problemas e as dores psíquicas, exige ampla rede de apoio e processos contínuos e constantes de desenvolvimento desses recursos internos.

O que se recomenda enquanto estratégias de prevenção envolve: ampliação da rede de assistência e proteção aos adolescentes, estratégias de saúde mental nas escolas, enfrentamento ao estigma e a todas as formas de preconceito, ações de prevenção à violência sexual, programas de desenvolvimento de habilidades para a vida, engajamento comunitário e familiar nos cuidados com adolescentes, projetos intersetoriais e interseccionais, identificação e acompanhamento precoce dos casos que necessitam de atenção especializada.

Além disso, a inclusão de projetos artísticos nas políticas públicas para adolescentes, fortalecimento dos vínculos familiares e de amizade, integração entre serviços e políticas públicas que abranjam as questões raciais, de gênero e de classe e programas que auxiliem no desenvolvimento de recursos para reconhecer e integrar a diversidade emocional e auxiliar no percurso identitário.

Quando um adolescente faz danos a si, é um chamado de ajuda e socorro. Não ataque, não critique, não julgue. O que precisa ser acolhido? Qual o sofrimento que ainda não tem palavras para ser expresso e que está saindo no corpo? Quais as dores que precisam de aconchego e carinho? Quais as rejeições, os medos, as dúvidas, inseguranças? Será que você consegue amar e aceitar seu filho como ele é?

Será que consegue perceber que o sofrimento dele precisa de sua ajuda? Muitas vezes o sofrimento pode ter relação com a escola, com a exclusão social ou dos amigos e a família não deve culpar o adolescente por sofrer, exigindo força ou coragem. Às vezes a produção do sofrimento pode se dar no âmbito familiar, outras vezes não. Mas é sempre importante contar com a proteção e o cuidado familiar.

Entretanto, o desenvolvimento e a saúde mental dos adolescentes não é responsabilidade somente da família, é necessário o cuidado do ambiente, o qual envolverá comunidade escolar, equipamentos de saúde, vizinhos, lideranças comunitárias, família ampla, amigos, políticas públicas, a cidade e toda a sociedade.

Observe se há sinais de isolamento, uso de roupas compridas, converse abertamente sobre temas em saúde mental sem preconceitos, disponibilize-se para acolher, realizar perguntas como: tem algo que eu possa te ajudar? Gostaria de conversar?

Preste atenção quando o adolescente esboça frases que contém desesperança e sensação de descrédito em si e no futuro ou quando vivenciar perdas muito dolorosas. A presença genuína e autêntica, pode ajudar a se conectar com núcleos internos de vida e esperança e a encontrar espaços dentro de si para perceber as coisas boas internas e se considerar digno de receber amor e cuidado. E assim, em vez de ataque, a pele possa vir a receber carinho e cuidado.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora. 

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