As fronteiras entre fantasia e adoecimento no uso dos brinquedos
Nas brincadeiras e nas piadas são expressos desejos e verdades inconscientes, muitas vezes insuportáveis de serem assumidas pela consciência

O uso da imaginação, o exercício da capacidade lúdica, é imprescindível para o desenvolvimento humano. Através do brincar exploramos relações, encontramos soluções para os problemas, alimentamos nosso mundo interno, fortalecemos sonhos, esperança, vínculos, aprendemos sobre o mundo e a lidar com regras, ampliamos laços sociais e damos vazão aos desejos.
Ao longo da história humana, os jogos já foram utilizados para resolver disputas, conflitos, demonstrar poder, simular a realidade, participar de processos educativos e desenvolver a função simbólica e a criatividade.
Existem registros dos primeiros brinquedos em 2.600 a.C na Mesopotâmia. Os brinquedos surgem com a própria construção do humano. Nossa capacidade de modificar a realidade, de transformar, de reinventar a vida, de obter alegria através do exercício do domínio sobre o que nos inquieta do mundo é uma conquista poderosa e necessária ao longo do desenvolvimento.
Os brinquedos revelam também a marca da sociedade, da cultura e da história. Ao longo dos tempos, vemos a evolução dos brinquedos, dos jogos, junto com o avanço das técnicas e da tecnologia. Reproduzindo muitas vezes as contradições e inquietações do mundo do trabalho, das relações e desafios da vida.
Devido à relação do brinquedo com a subjetividade, os mesmos expressam os conflitos, dilemas e questões de uma época. Assim, observamos o aumento de problemas decorrentes do uso abusivo de jogos, seja sob a forma de apostas, pela dependência de jogos online, através de consoles ou dos próprios celulares, o que aponta como o sofrimento pode se expressar de maneira diversa e profusa.
Da mesma maneira vemos o surgimento de brinquedos que procuram criar ou atender a demandas reprimidas de mercado e de desejos. Ultimamente, muito se tem questionado sobre o uso das bonecas "reborn", que são feitas com grande semelhança a bebês reais. Já houve casos de pessoas querendo levar para tomar vacina, sentar em cadeira de ônibus, solicitar licença maternidade, o que aponta questionamentos sobre o limite entre realidade e fantasia.
Vivemos, cotidianamente, no traço tênue entre esses limites; nos sonhos, nos desejos, na forma como guardamos memória sobre o vivido, deformamos a realidade o tempo todo, e brincamos em grande parte do dia. Fazemos piadas, criamos, rabiscamos, sonhamos, precisamos de fugas para poder lidar com a dureza do mundo. Nas brincadeiras e nas piadas, embora de forma disfarçada, são expressos desejos e verdades inconscientes, muitas vezes insuportáveis de serem assumidas pela consciência.
Daí a tentativa em dizer que, ao brincar, não é de verdade. Entretanto, é exatamente o oposto: ao brincar, expressamos a verdade. O que nos leva a pensar sobre quais os desejos que buscam se expressar através do uso de uma boneca por adultos, que os tratam como se fossem crianças de verdade.
Pode ser a necessidade de elaborar um luto, de poder vivenciar uma maternidade que não foi possível, de encontrar uma saída para a solidão, de se permitir um lazer ou a posse de um brinquedo que não foi possível na infância, de desenvolver laços com outras pessoas para brincar junto, de explorar possibilidades que não se tornam viáveis com bebês reais. Mas quando algo pode se tornar problemático?
Geralmente, as pessoas que brincam sabem os limites do brinquedo e da realidade. As próprias crianças dizem com frequência: “É só de brincadeirinha”. Entendendo que a verdade está no mundo mágico do faz-de-conta, mas que conseguem transitar para o mundo real e perceber as fronteiras e se alimentar de ambos.
Quando uma brincadeira me distancia do contato das pessoas, ocasiona isolamento, perdas financeiras, é utilizado como fuga da realidade para não resolver o que preciso enfrentar na minha vida adulta, quando a frequência e intensidade (será que está substituindo compromissos, atividades?) fogem do meu controle; preciso observar e analisar: será que está impactando nas minhas relações pessoais e profissionais?
O que estou buscando naquela boneca que revela dificuldades nas relações com os humanos? Consigo nomear que é uma brincadeira ou não consigo distinguir o tempo de brincar, dos encontros para partilhar as novidades sobre o brinquedo, da vida cotidiana? O que será que estou fugindo de lidar na minha vida, que em vez do brinquedo estar ajudando, tem me distanciado ainda mais? Tenho perdido a noção entre os objetos reais e o que é fantasia?
Compreendo que crianças e bebês de verdade realizam trocas, interagem, permitem outra relação com o tempo e que possuem seu próprio aparelho psíquico? Que existem mudanças e crescimentos que revelam a existência de um sujeito que está se desenvolvendo e que interage com o aparelho psíquico dos pais, algo que uma boneca não realiza? Que preocupações que são necessárias e direitos garantidos às crianças e seres humanos não são extensivas a objetos inanimados, ou seja, não posso querer matricular uma boneca na escola, nem exigir que um cartório a registre?
Veja também
Os adultos também precisam brincar e criar; mas esse exercício deve ser para alimentar a vida e não restringi-la. Quando o brincar torna impeditivo de usufruir da vida, quando você se torna refém do brinquedo, quando acarreta prejuízos afetivos, financeiros, profissionais é importante levar o que se esconde no brinquedo para ser revelado nos cuidados através de um ser humano, das questões que aquela pessoa pode estar precisando.
Compreender envolve não julgar, não fazer comentários maldosos, não atacar ou perseguir a pessoa. Sempre buscamos aquilo que precisamos e nem sempre conseguimos nos ajudar da melhor forma. Mas é sempre especial exercitar a solidariedade para poder brincar junto de ajudar e entender que por trás de muitos adultos podem existir crianças precisando se divertir e brincar, assim como podem existir crianças em grande sofrimento e abandonadas. Diferenciar onde o uso do brinquedo vive e o que ele alimenta é fundamental para oferecer os cuidados ou incentivos necessários.