Como livrar-se de culpas de pais incapazes de assumir a responsabilidade parental?

Processo de ruptura demanda coragem e tempo, mas pode abrir caminho para relações mais autênticas.

Escrito por
Adalberto Barreto producaodiario@svm.com.br
Legenda: A troca de experiências em ambientes coletivos seguros estimula solidariedade e reconhecimento mútuo, essenciais para superar o isolamento e iniciar o processo de libertação da culpa.
Foto: Transly Translation Agency / Unsplash

O sentimento de culpa é uma sombra que acompanha muitas pessoas desde a infância, especialmente aquelas que cresceram em famílias disfuncionais, marcadas pela ausência de amor, cuidado e atenção parental. Esse sentimento, muitas vezes internalizado, leva indivíduos a assumir culpas e responsabilidades emocionais que não lhes pertencem, perpetuando ciclos de autossabotagem e dificuldades relacionais.

Compreender a origem dessa culpa, seus efeitos e como se libertar é fundamental para quebrar padrões prejudiciais e conquistar uma vida mais saudável. Na infância, é comum que filhos de pais negligentes, emocionalmente imaturos ou ausentes se sintam culpados pela falta de afeto e amor que deveriam receber.

E por que muitos pais têm essa dificuldade? É comum em terapias identificarmos pais que olham para seus filhos e não os veem, e sim se veem neles. Revivem com seus filhos a mesma relação conflitiva vivida com seus pais. Os nascimentos se misturam e não conseguem perceber que estão prisioneiros de um trauma passado.

Dois acontecimentos, dois nascimentos se fundem e se confundem e, por isso, não conseguem se separar um do outro. Revive no presente o seu passado traumático. A criança pressente que tem algo errado e, por sua generosidade, absorve inconscientemente as histórias que se fundem e se confundem, dificultando o entendimento do equívoco relacional.

Já do lado dos filhos, muitas vezes, desenvolvem uma generosidade excessiva e agem como “pessoas boazinhas”, tentando reparar erros cometidos pelos pais ou avós. E, quanto mais tentam, menos conseguem e mais infelizes ficam. Quando tentam corrigir o passado, tornam-se ainda mais infelizes, por haver situações que somente quem as praticou pode reparar.

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Esse comportamento resulta do desejo de conquistar amor e reconhecimento, mesmo que isso signifique sacrificar suas próprias necessidades e identidade. O máximo que se pode fazer é aprender com essas experiências para não as repetir na família atual. A correção se faz hoje, com os olhos voltados para a próxima geração, e não tentar consertar como se ainda vivesse no passado. O passado serve de lição para aplicar em sua vida atual e futura.

Essas pessoas tendem a desenvolver uma postura autodepreciativa, acreditando não serem merecedoras de amor ou reconhecimento. O padrão de comportamento se repete: em vez de confrontar quem realmente deveria assumir a responsabilidade, elas buscam reparar o que as gerações anteriores não fizeram, sacrificando-se e anulando suas próprias necessidades e identidade. Passam a viver a vida deles e esquecem de viver suas vidas. Tornam-se ecos de vozes e atos praticados por terceiros em um passado distante.

Ao assumir culpas alheias, perpetuam o ciclo de submissão e autossabotagem, dificultando ainda mais a construção de uma autoestima saudável e a libertação dos padrões herdados. Terminam por reproduzir inconscientemente as mesmas falhas de seus pais no relacionamento familiar atual.

Já outras culpas aparecem em crianças que crescem em ambientes marcados por repressão de seus desejos e emoções, convivendo com pais autoritários ou controladores, aprendem a reprimir seus sentimentos e tornam-se vulneráveis à culpa.

Quando seus comportamentos naturais são punidos ou desvalorizados, compromete-se o desenvolvimento da personalidade, tornando-as submissas ou contestatórias, incapazes de reconhecer e validar suas próprias necessidades.

O excesso de culpa pode causar estagnação emocional, infelicidade crônica e sensação de aprisionamento interno, tornando o indivíduo incapaz de agir em prol de si mesmo. A generosidade excessiva, embora vista socialmente como virtude, transforma-se em fonte de sofrimento, ao facilitar situações de exploração ou abandono.

Romper com a culpa exige desconstrução de crenças profundas e superação de barreiras internas, como medo de rejeição e necessidade de aprovação. Barreiras externas incluem expectativas familiares rígidas e padrões culturais que valorizam o sacrifício pessoal.

Muitas pessoas mantêm comportamentos autodestrutivos por lealdade a valores que já não lhes servem, perpetuando sofrimento. A lealdade negativa é o apego a vínculos e padrões prejudiciais por fidelidade a pessoas ou ideias que impedem o desenvolvimento pessoal. Ela prioriza o afeto e não os valores que norteiam as relações familiares.

No contexto da culpa, manifesta-se quando o indivíduo permanece preso a expectativas familiares ou crenças internalizadas, mesmo que isso implique dor e limitação de autonomia emocional. Ele sacrifica desejos e sonhos por lealdade afetiva. O grande equívoco é que ele age como se pudesse, com esse sofrimento, pagar os juros de uma dívida afetiva alheia.

Superar a culpa envolve autoconhecimento e reflexão crítica sobre a origem dos sentimentos e padrões de comportamento. Estratégias de superação incluem apoio psicológico, desenvolvimento da assertividade e prática da autocompaixão.

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É essencial reconhecer que generosidade saudável não implica autonegação, nem sacrifício, e que o direito à felicidade é independente da aprovação alheia ou dos erros cometidos pelos que os antecederam.

Romper com lealdades negativas demanda coragem e tempo, mas pode abrir caminho para relações mais autênticas e uma vida emocional mais plena. Somente pela tomada de consciência é que podemos encerrar esses ciclos de repetições geradoras de sofrimento. Buscar suporte em grupos de apoio, como Terapia Comunitária Integrativa, favorece o acolhimento e o fortalecimento emocional.

O compartilhamento de vivências promove a ressignificação de crenças limitantes e o fortalecimento da autoestima.

A troca de experiências em ambientes coletivos seguros, protegidos por regras que protegem a partilha de experiência sem risco de ser julgada, como ocorre nas rodas de terapia comunitária integrativa, estimula solidariedade e reconhecimento mútuo, essenciais para superar o isolamento e iniciar o processo de libertação da culpa. E, dessa maneira, se livrar desse comportamento de assumir para si, esse conflito não resolvido pelas gerações anteriores.

Vejamos alguns depoimentos de pessoas que participaram de uma roda de terapia comunitária integrativa, que viveram em famílias disfuncionais onde pais guardam um sentimento de culpa por não conseguirem transmitir amor e cuidados a seus filhos. Elas aprenderam a transformar a dor da culpa, que carregavam em suas vidas, em aprendizado e superação.

Uma mulher relata que, após a morte da mãe, assumiu o papel materno junto aos irmãos, perdendo seu próprio lugar de filha na família. Somente ao se afastar e refletir, conseguiu reencontrar seu lugar, compreendendo que ocupava uma posição e uma culpa que não eram dela. O processo de terapia permitiu passos importantes rumo à autonomia.

Outra pessoa compartilha a dificuldade de se sentir amada pelo pai e, durante anos, acreditou ser culpada por isso. A terapia ajudou a perceber que a incapacidade de demonstrar afeto era dele, não dela. Ao aceitar essa realidade, deixou de buscar aprovação externa e passou a se amar e se aceitar, rompendo o ciclo de mendigar amor paterno.

Em uma família onde o amor não era demonstrado entre os pais nem para os filhos, irmãos decidiram cuidar uns dos outros e parar de competir por um afeto parental que não existia. Esse movimento coletivo foi fundamental para reconstruir vínculos de solidariedade.

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Pessoa criada em família disfuncional, com mãe portadora de transtornos mentais e pai ausente, relata a experiência de ser adotada por outra família também problemática. A busca por apoio em amizades e investimentos pessoais foi essencial para trilhar o caminho de libertação e realização, especialmente na maternidade e na espiritualidade.

Essas narrativas evidenciam a importância do reconhecimento do papel dos vínculos familiares disfuncionais, da necessidade de se livrar da culpa pessoal e da busca por bem-estar próprio.

A tomada de distância e a consciência por meio da terapia permitem ver com clareza o próprio lugar na família, compreender que certas falhas afetivas pertencem aos pais e não aos filhos, e romper padrões de mendicância afetiva.

A busca por apoio em amizades, redes comunitárias e pessoas de confiança cria uma rede de afeto capaz de substituir o amor parental ausente, promovendo a reconstituição de laços fora do núcleo familiar original. Esses grupos funcionam como famílias substitutas. Lá elas recebem afeto, estímulo e o apoio necessário para conviver em um ambiente sadio.

Observa-se que a trajetória de superação da culpa é marcada por dor, sofrimento, aprendizado e livramento gradual do sentimento de culpa. Mudar exige entendimento, compreensão, tomada de consciência dessas implicações inconscientes que nos impulsionam a agir e poder desenvolver ações de autocuidado e reconstrução de laços afetivos.

A autonomia, o perdão e a construção de significados mais saudáveis do que o vínculo biológico tradicional são fundamentais para a superação. Transformar a experiência dolorosa em aprendizado é talvez o maior passo que se pode dar.

Ao constituir sua própria família, é possível corrigir padrões sem exageros, encerrando ciclos de repetição e assumindo a própria voz, deixando de ser eco de vozes antigas.

A culpa, quando originada em dinâmicas familiares repressoras e sustentada por lealdades negativas, é um poderoso obstáculo ao bem-estar psicológico. Reconhecer sua origem e função é essencial para a libertação. Ao desafiar padrões de dominação e buscar novas formas de expressão emocional, é possível transformar a culpa em aprendizado, promovendo crescimento, autonomia e uma vida emocional mais saudável.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor. 

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