De pais para filhos, cooperativas no Ceará transformam o sertão em campo fértil de inovação
“Eu ajudava os meus pais de segunda a sexta-feira na roça e, quando fui crescendo, vi que quem dava o preço era o comprador, não era a gente que produzia”.
A insatisfação com a falta de autonomia para precificar a própria produção fez Valdemar Gomes fundar a Cooperativa de Agricultores e Empreendedores Familiares do Estado do Ceará (Coopdest), há 24 anos, no Sertão dos Inhamuns.
Ao lado do primo, Valdemar idealizou uma associação que pudesse garantir a valorização da região. “Era um sonho da minha família. Fomos buscar conhecimento, participando de congressos, pesquisando em outras regiões, para nos aprimorar”, lembra.
Hoje, são mais de 500 trabalhadores cooperados, incluindo produtores de frutas, hortaliças e pecuaristas. A articulação permitiu o escoamento dos produtos, garantindo até a exportação da pimenta-de-cheiro de Quiterianópolis para a Argentina - os envios devem bater recorde em 2025, chegando a 60 toneladas.
Maria Zeneide Lopes, de 60 anos, também transmitiu seus saberes como agricultora a seus familiares e hoje trabalha ao lado do esposo, três filhos e genro. Ao se afiliar à Coopdest, ela conseguiu estruturar o negócio e investir em novos cultivos.
“Nós vendíamos só no mercado local, então não tinha um preço fixo. Hoje, a gente já planta sabendo onde vai colocar, com os preços fixos o ano todo. Em lugar de ter um atravessador, entregamos na cooperativa, e a cooperativa entrega nas escolas. Isso ajuda muito a gente”, celebra.
Esta é primeira parte da reportagem especial 'Cooperativismo: união que transforma o Ceará', em que o Diário do Nordeste aborda o crescimento do cooperativismo agrícola no Ceará e a sua importância para o desenvolvimento econômico-social do Estado.
MODELO DE SUCESSO NO CEARÁ
Para Valdemar, além da garantia de um ganho justo, o crescimento da Coopdest decorre também da busca constante por inovação e capacitação. O crescimento deve acompanhar, entretanto, os propósitos sustentáveis da cooperativa.
“Entendemos que é um direito devolver para o produtor mais recursos. Começamos comprando um carro frigorífico para fazer entregas, fazendo intervenções em estradas, depois colocamos energia solar”, conta.
Todas as produções têm certificado orgânico, não utilizam agrotóxicos e implementam práticas agroecológicas, segundo Valdemar. O investimento em novas práticas é definido coletivamente nas assembleias gerais.
A tomada de decisões pelo coletivo é um dos fatores que torna o cooperativismo um modelo de negócio de sucesso, destaca a doutora em administração Nazaré Soares, professora do Programa de Pós-Graduação em Avaliação de Políticas Públicas da Universidade Federal do Ceará (UFC).
“Os processos de gestão ocorrem de forma compartilhada e horizontalizada, e as decisões são tomadas coletivamente. A resolução de conflitos é feita de maneira sustentável e pensando no longo prazo, gerando muita aprendizagem”, explica.
Com adesão livre, participação econômica de todos os cooperativos, gestão democrática e constante informação, as cooperativas seguem valores históricos. Os primeiros registros de cooperativismo no Brasil remontam à época colonial, quando escravizados se uniam em comunidades para financiar a compra de cartas de alforria.
"Não é somente um CNPJ. É um sistema de valores, uma prática social que encaminha a forma de trabalho coletivo, que se preocupa com a vida das pessoas. Também tem valores agroecológicos. É um modelo de negócio que promove união entre trabalho e vida", destaca.
PRODUÇÕES REGIONAIS ULTRAPASSAM BARREIRAS
A coragem de inovar permitiu uma produção de caju na caatinga cearense chegar a restaurantes finos de São Paulo na forma de espumante.
A bebida foi idealizada em 2020 por Vicente Monteiro, criador do Projeto Alquimista da Caatinga, dedicado a converter potenciais da estrutura social e produtiva em produtos manufaturados de alto valor agregado.
“A partir do meu interesse em entender como funcionava o caju, fui entrando em contato com uma tradicionalidade, um uso muito ancestral da fruta para a produção de bebidas, inclusive alcoólicas, para rituais e comemorações”, lembra.
Em meio ao processo de testagem do caju fermentado, surgiu a receita do Cauina. A produção começou de forma artesanal, na cozinha de Vicente. Agora, ocorre em um espaço industrial alugado, utilizando o modo de produção ‘cigano’.
Já há outros produtos testados, como um conhaque e um licor de caju. Para o lançamento, entretanto, o projeto demanda novos investimentos.
Vicente aponta que o sucesso do primeiro produto se deu devido à forma de comunicação, que conseguiu ultrapassar a barreira regional e manter a conexão com a origem cearense. Além disso, surgiram novas formas de vendas, até então não utilizadas em cooperativas.
“Tivemos que criar soluções de venda digital, um outro modo de organização econômica que nos possibilitasse nos tornar uma empresa, porque os modos de venda que encontramos geralmente não têm organização comercial, que é a divulgação de uma lista de lugares por onde o produtor vai passar", aponta.
A produção do espumante ocorre em cooperação com o agricultor familiar Silvanar Soares, pioneiro em cajuína vegana no Ceará.
“Ele começou vendendo a cajuína a R$ 3,50 por litro. Quando eu vi isso, percebi que não fazia o menor sentido e disse para ele que não correspondia ao valor de mercado. E esse apoio acabou gerando uma confiança mútua”, lembra Vicente Monteiro.
Como em outras cooperativas, o cajucultor não é visto como um fornecedor, e sim um ponto fundamental da cadeia.
“Ele é um criador. Criamos um modelo, acredito que inovador, que dá a possibilidade de o próprio Silvanar produzir o espumante. Uma tecnologia social para criar um produto contemporâneo, que também pode ser distribuída”, destaca.
Entre os sonhos do Alquimista da Caatinga, está expandir o número de produtores cooperados, sempre transferindo a tecnologia. “A gente pensa em desenvolver, com ajuda de Inteligência Artificial, ferramentas para acompanhar a pressão, a atividade metabólica das leveduras, por exemplo”, explica.
CIRCULAÇÃO DE RENDA GERA DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO-SOCIAL
A capacidade de reinvenção explica a curva de crescimento que o cooperativismo encontra na agricultura familiar cearense, mesmo com as condições climáticas desfavoráveis, destaca André Fontenelle, gerente jurídico do Sistema OCB CE.
“Na época da pandemia, em que o mundo inteiro precisou parar, muitas empresas no mundo demitiram empregados, mas as cooperativas tiveram acréscimos de empregos formais e receitas. Por que? Porque quando uma empresa está em dificuldade, corta custos. Na cooperativa, não há essa opção, então elas têm que se reinventar”, lembra.
As cooperativas cearenses movimentaram R$ 6,82 bilhões em 2024, com crescimento de 11,5% na receita em relação a 2023, conforme o Anuário do Cooperativismo Brasileiro 2025, realizado pelo Sistema OCB.
Um dos destaques foi o crescimento de 227% do resultado financeiro, com R$ 250 milhões em sobras - valor que retorna aos cooperados ou é reinvestido. O maior número de cooperativas são do segmento agrícola: 41 associações, com 506 empregados.
André Fontenelle destaca que a renda média dos agricultores cooperados foi de R$ 7.400 em 2024, gerando circulação de renda em diversas cidades do interior.
“Quando uma empresa que chega a uma cidade do interior gera lucro, essa riqueza vai ser levada para fora, para a cidade da matriz ou para onde moram os acionistas. No caso da cooperativa, esses cooperados compram mais do mercado da cidade, da farmácia, a riqueza circula dentro da região”, aponta.
O investimento em tecnologia mostra que a agricultura familiar está pronta para ocupar novos espaços, avalia Lafaete Almeida, coordenador do projeto São José, da Secretaria de Desenvolvimento da Agrário do Ceará.
“Hoje, é possível observar cooperativas mais preparadas para atender às exigências do mercado, com processos aprimorados, certificações e uma visão voltada à sustentabilidade”, aponta.
Os produtores têm ampliado sua capacidade de gestão, com oportunidades para comercialização em novos espaços, em outros estados e até fora do Brasil, avalia Lafaete.
FORMA DE NEGÓCIO DURADOURA
A estabilidade financeira dos cooperados se amplia porque a cooperação consiste em um modelo de negócio duradouro. No Ceará, 53 cooperativas têm mais de 20 anos de atuação do mercado.
A maior parte das organizações cearenses tem idade entre 21 e 40 anos, enquanto a maior parte das empresas fecha as portas com menos de dez anos de atividade. Nazaré Soares reitera que a longevidade está associada à forma de produção que vai além da comercialização, com relações de reciprocidade.
É preciso estimular, segundo a especialista, na propagação dessa forma de trabalhar para a juventude, principalmente como uma forma de resistência a sistemas que agridem a saúde.
“Temos um modelo de sociedade que nos ensina a competir, a partir do capitalismo, principalmente nesse contexto atual. Então, a gente não é educado a cooperar, as juventudes não têm o entendimento da importância de cooperativismo”, avalia.
Outros desafios para que o sistema se perpetue são a necessidade de assistência técnica e a dificuldade de acesso a crédito.
André Fontenelle, gerente jurídico do Sistema OCB CE, reitera que o maior gargalo enfrentando pelas cooperativas é a dificuldade de obter financiamento.
“Mesmo em bancos públicos, a análise de crédito para cooperativas não tem sido fácil. Se você tem uma empresa comum, consegue mais rápido do que a cooperativa. E isso acaba gerando uma desigualdade, uma diferença de competitividade”, afirma.
O investimento em práticas agroindustriais, essencial para beneficiar as produções e viabilizar aumento de renda, se torna praticamente impossível sem crédito.
Apesar das dificuldades, o potencial econômico do cooperativismo agropecuário cearense tem crescido em ritmo mais acelerado do que o PIB do Ceará, destaca o gestor.