Do transporte de cargas e pessoas ao planejamento urbano, o setor de infraestrutura é um dos pressionados para aderir a um modus operandi mais sustentável. Isso toma forma no Ceará com a adaptações dos portos e até a invenção de um cimento com potencial reduzido de poluição. O Estado ainda carece, entretanto, de ações sociais, considerando a acessibilidade das novas tecnologias e os riscos à infraestrutura verde.
Esse dilema é abordado última reportagem da série Construindo o Futuro, que mostra como diversos setores produtivos do Ceará estão lidando com a emergência climática e trabalhando para reduzir o impacto socioambiental.
A agenda de transição energética ainda toma um foco técnico e tecnológico, voltada para o viés econômico, alerta Flávia Collaço, doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Energia da Universidade de São Paulo (USP).
"Há pouco olhar para as questões de acesso, pobreza energética e injustiças socioambientais, climáticas e energéticas. A questão social é um dos elos mais fracos do tripé da sustentabilidade", opina.
A especialista aponta que a valorização de novas fontes de energia à matriz energética é um forte avanço, mas que isso não tem impactado ou melhorado os marcadores sociais.
Cerca de 62% das famílias nordestinas precisam deixar de comprar alimentos básicos para pagar a conta de energia, aponta pesquisa de Justiça Energética realizada pelo Instituto Pólis. As ações de transição energética focam, entretanto, na redução de emissões de gás feito estufa, que é apenas um dos problemas do uso e produção de energia.
As políticas públicas que pensam transição energética e sustentabilidade precisam ser mais coerentes e integradas, conectar essas questões e olhar para as vocações locais. Existe uma lacuna em termos de integração, muitos conflitos surgem nesses processos de transição, principalmente em regiões de alta biodiversidade e com comunidades tradicionais
PORTO DO PECÉM NA DIANTEIRA
Na infraestrutura de transportes aquaviários, o Porto do Pecém tem protagonismo nacional e até global pelo investimento na indústria do hidrogênio verde. A Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) destaca a vocação do complexo para criação de um hub de hidrogênio de baixo carbono e derivados
O Complexo do Pecém saiu na frente e está entre os tímidos 7,5% de instalações portuárias brasileiras que planejam produzir o hidrogênio de baixo carbono. O empreendimento tem mais de 30 acordos de intenção com empresas que querem produzir o combustível sustentável no empreendimento e deve abrigar o primeiro projeto comercial a sair do papel no País.
Já há um projeto encaminhado, com operadores escolhidos, para instalar um terminal de amônia verde - uma das formas em que o hidrogênio será transportado. Além de essencial para reduzir as emissões de poluentes de diversos setores da indústria, o hidrogênio também deve viabilizar a transição energética do transporte marítimo.
“Para atingir as metas de redução de emissões, serão necessárias mudanças profundas na tecnologia e nos combustíveis usados pelas embarcações. Uma das soluções mais promissoras a longo prazo é a utilização do hidrogênio de baixo carbono e seus derivados, como a amônia e metanol, em substituição aos combustíveis fósseis”, aponta o Diagnóstico de Descarbonização, Infraestrutura e aplicações do Hidrogênio nos Portos da Antaq.
Enquanto o uso do combustível renovável não é uma realidade para as grandes embarcações no País, o Porto do Pecém aposta na eletrificação de seu funcionamento. Cerca de 70% da operação do terminal já é elétrica, e já há capacidade instalada para 'eletrificação' total, aponta Marco Ximenes, gerente de Manutenção do Complexo.
“Para cada navio transportado com a correia elétrica, estamos reduzindo a possibilidade de 100 mil litros de óleo diesel queimados. Os operadores estão estudando adquirir caminhões elétricos. Além da questão ambiental, essa migração para eletrificar as operações é estratégica e econômica”, comenta.
Para garantir que a energia utilizada seja limpa, o porto do pecém vai utilizar, a partir de outubro, energia comprada no mercado livre de um fornecedor com certificação I-REC, que confirma a origem renovável.
Também está entre os próximos planos do equipamento fornecer energia elétrica para os navios atracados, evitando o consumo de combustível no período que as embarcações estejam no local. Ximenes ressalta o ambiente criado para os operadores portuários investirem na descarbonização.
“Você já tem energia disponível, confiável, com capacidade instalada a ponto de atender. Nós temos revisão, proteção e um sistema muito robusto. E é uma energia com custo menor, comparado a uma residência, por exemplo. Então tem infraestrutura, confiabilidade, sustentabilidade e economia. É um ambiente propício para que os operadores adquirirem os equipamentos”, defende.
ADAPTAÇÕES COMEÇAM NO PORTO DO MUCURIPE
A migração para o mercado livre de energia, garantindo um fornecimento renovável, também será realizada pelo outro grande terminal do Ceará, o Porto do Mucuripe. Visando a descarbonização, o equipamento fechou acordo com a Fundação Valenciaport, vinculado ao porto espanhol de mesmo nome, para identificar as emissões de poluentes e planejar ações para reduzi-las.
O mapeamento de emissões deve ser entregue em março e, posteriormente, uma seleção de ações que devem ser tomadas, segundo Lucio Gomes, diretor-presidente da Companhia Docas no Ceará, que administra o porto.
“Esse plano de ação vão ter tarefas a nosso alcance, temos recursos para isso, porém a gente sabe que não vai ser uma tarefa fácil. Pela própria característica do setor, vamos depender de navios que vem do exterior. Não vamos ter condições, por exemplo, de trocar todos os três que funcionam a diesel por elétricos”, reconhece.
O Porto de Fortaleza recebe, por mês, uma média de 55 navios movidos a combustíveis fósseis. A operação abrange de 300 a 600 caminhões rodando por dia, a depender do nível de movimentações.
Lucio Gomes aponta que todos os agentes envolvidos no empreendimento, desde o Terminal Marítimo de Passageiros até a produção nos moinhos, têm atenção às exigências globais de sustentabilidade e devem colaborar com o objetivo.
“O atual operador do terminal de contêineres está em segundo lugar em movimentações do mundo. O Tergram [terminal de grãos] faz a movimentação de três dos grandes moinhos do Brasil. São grandes empresas, isso não é estranho para eles”, afirma.
APÓS VINTE ANOS, UMA FERROVIA
Uma promessa antiga de revolução no transporte de cargas do Ceará e do Nordeste é a ferrovia Transnordestina. Após mais de vinte anos do início das obras, a expectativa é que o modal fique pronto em 2027.
A ferrovia de 1.200 km irá ligar a cidade de Eliseu Martins, no sertão do Piauí, ao Porto do Pecém. No Ceará, a linha férrea deve ter 608 km e funcionará com três terminais de carga, interligando grandes polos produtores. O terminal do Pecém projeta dobrar a movimentação de cargas com a chegada da ferrovia.
A Transnordestina tinha investimento inicial previsto em R$ 4,5 bilhões e prazo de conclusão para 2010. Porém, 14 anos depois, a obra não foi concluída e já está orçada em R$ 14 bilhões. A ferrovia tem capacidade inicial projetada de transportar 30 milhões de toneladas por ano.
Segundo a Transnordestina Logística S.A (TLSA), substituindo a utilização de carretas, a ferrovia tem capacidade de reduzir a emissão de cerca de 1 milhão de toneladas de CO2 por ano. A ferrovia ainda não tem planos, entretanto, de utilizar combustíveis renováveis.
Gildemir Ferreira da Silva, especialista em Transportes e Regulação, explica que as iniciativas de trens movidos a combustíveis sustentáveis, como o hidrogênio verde, ainda são bastante incipientes.
O especialista afirma que os grandes transportes de cargas no Ceará acompanham o cenário nacional, sem grandes desatualizações. “Falando em tecnologia embarcada, não estamos atrasados. Se estivermos falando em modais que tenham transporte de grande volume de cargas, também não temos um grande atraso”, avalia.
Em relação ao trasporte público, entretanto, há impactos negativos pela inexistência de ferrovias e o atraso do metrô, sobretudo em Fortaleza.
AVANÇO NA CONSTRUÇÃO CIVIL
Além de mudanças na operação de grandes empreendimentos e no setor de transportes, a edificação de novos prédios também deve passar por adaptações.
O relatório mais recente do Programa para o Meio Ambiente da ONU (PNUMA) aponta que o setor da construção civil foi responsável por cerca de 21% das emissões globais e gases de efeito estufa.
Uma solução descoberta por pesquisadoras cearenses é a utilização de cimento e concreto sustentáveis, sem materiais naturais na composição. Os novos produtos são feitos a partir de resíduos de cinzas da termelétrica e da Companha Siderúrgica do Pecém.
Heloína Nogueira da Costa, doutora em Engenharia e Ciência de Materiais e responsável pela descoberta do material, explica que o cimento álcali-ativado não precisa passar pelo processo de calcinação, que leva à liberação de diversos gases.
“Nossa matéria-prima é residual de outras indústrias. Esse material não passa pelo processo de calcinação e isso diminui as emissões de dióxido de carbono do produto, pode chegar até 75% a menos do que o cimento convencional”, aponta.
Com o andamento das pesquisas na Universidade Federal do Ceará (UFC), Heloína e outros pesquisadores chegaram a outros produtos. O cimento sustentável deu origem a um concreto feito integralmente de materiais alternativos.
Heloína ressalta o desenvolvimento de novos materiais vem de uma preocupação antiga da comunidade científica. “Já faz um certo tempo que a indústria da construção civil tem se preocupado em diminuir o consumo de carbono, de energia e de recursos naturais. Tanto na indústria quanto na academia, existe uma busca por como tornar esse processo de construir mais sustentável”, afirma.
Está também em desenvolvimento uma argamassa com base no novo material. Todos os materiais já têm patente reconhecida ou estão em processo de patenteamento. Eduardo Cabral, coordenador do Laboratório de Materiais de Construção Civil (LMCC) e orientador de diversas pesquisas do ramo, aponta que há interesse de grandes empresas do setor de utilizar os novos materiais.
“Quando empresa vai construir uma edificação e procurar financiamento no banco, existe uma distinção para os empreendimentos ditos 'verdes'. As taxas de financiamento colocadas para os futuros proprietários também são menores. Então tem um ganho financeiro, traz atratividade e tem um lado comercial”, aponta.
Segundo um professor, já há um grande empreendimento em construção no Estado que deve utilizar os novos materiais. A expectativa dos pesquisadores é que as produções cresçam em escala, diminuindo os custos.
“Acho difícil que se deixe de usar o cimento tradicional, porque não existe nenhum ligante mais barato, que custam 60 centavos o quilo. Mas ele pode coexistir com um 'irmão', que consiga baixar e naturalmente tornar isso mais ecológico”, afirma.
INFRAESTRUTURAS VERDES
Pensar infraestrutura em um viés sustentável não se limita a mitigar os impactos dos empreendimentos e operações, mas também preservar e até implementar infraestruturas verdes.
Um dos principais exemplos são os corredores ecológicos, que ligam unidades de conservação e possibilitam o fluxo de espécies e recolonização de áreas degradas. No Ceará, há apenas um exemplo: o corredor ecológico do Rio Pacoti, que compreende duas faixas ao longo do rio e dos açudes Acarape do Meio, Pacoti e Riachão.
Newton Becker, especialista em infraestrutura verde e arquitetura paisagística, explica que teoricamente o Estado já tem uma rede de áreas verdes preservada, a partir do código florestal. Na prática, entretanto, não há uma política estadual ou nacional que planeje a utilização dessas zonas
O especialista aponta que as redes verdes apresentam uma série de benefícios para a população, como o controle de temperatura e umidade, reprodução de espécies e criação de ambientes sociais, voltados ao lazer e paisagens. Há também benefícios econômicos, que não são considerados.
“Não é uma questão do Ceará. É um cálculo que ninguém está fazendo. As áreas verdes podem prestar serviços que economicamente talvez sejam maiores do que infraestruturas convencionais. A recuperação de mangues, por exemplo, oferecia um potencial mercado de créditos de carbono”, afirma.
Segundo Becker, o Ceará ainda tem uma situação de boa conservação ambiental, mas precisa entender o potencial infraestrutural e como tornar essas áreas competitivas.
“Apesar do estado carecer desse tipo de planejamento, já existem planejamentos regionais para o Maciço de Baturité, para sub-regiões de Estado. As cidades do Ceará tem potencial muito grande de ter aderência às infraestruturas verdes, diferentemente das cidades do sudeste que consolidaram uma indústria muito mais predatória”, revela.
O pesquisador alerta para o risco desse potencial ser perdido com a expansão extensiva da indústria de energia renovável, que teoricamente tem potencial sustentável. “São atividades que tem o provimento de uma energia mais limpa, isso é muito importante, mas quando ela é centralizada em corporações, acaba disputando terra com essas comunidades. As instalações comprometem paisagens de relevância e podem comprometer a harmonia do sistema”, comenta.
A visão é compartilhada Adryane Gorayeb, pesquisadora do Observatório da Energia Eólica, que aponta os riscos da acelerada expansão das novas infraestruturas de energia para os territórios e povos tradicionais. Ela aponta a necessidade de criar uma política de restauração e retorno financeiro social para as populações impactadas.
"As eólicas offshore, por exemplo, vão desenvolver uma indústria no mar e essa energia pode não ser nem utilizada no território nacional. Pode ser só uma energia para auxiliar os países, especialmente do Norte Global, a cumprirem suas metas no acordo climático. O nosso maior problema de emissões é realmente da geração de energia ou de outras atividades, como o agronegócio? Acabamos absorvendo as narrativas do Norte Global, sem nos inserir completamente nessa equação", afirma.