Ceará precisa ir além do hidrogênio verde para fazer neoindustrialização, dizem especialistas
Com a terceira maior produção industrial do Nordeste, atrás de Pernambuco e Bahia, o Ceará tem a oportunidade de crescer seu protagonismo no setor com a potencial indústria do Hidrogênio Verde. O Estado tem encabeçado a atração de investimentos para a produção do combustível sustentável, mas precisa também concentrar ações em outras áreas de desenvolvimento.
Da produção têxtil à indústria de cerâmica, as plantas fabris cearenses precisam se enquadrar nas novas necessidades impostas: reduzir a emissão de gases poluentes, diminuir os dejetos gerados, utilizar fontes de energia sustentáveis, entre outras.
Os impasses do processo de transformação da indústria cearense são abordados na segunda reportagem da série 'Construindo o Futuro', que mostra como diversos setores produtivos do Ceará estão lidando com a emergência climática e trabalhando para reduzir o impacto socioambiental.
Veja também
Antes da chegada do ‘combustível do futuro’, a substituição por combustíveis de menor potencial emissor é uma saída para a indústria cearense. É nisso que aposta a cearense Cerbras, grande indústria de revestimentos cerâmicos. A empresa foi pioneira no setor a utilizar o biogás no processo industrial, substituindo o gás natural - combustível fóssil.
A substituição ocorreu em 2018, promovida por uma parceria entre a Companhia de Gás Natural do Ceará (Cegás) e o grupo Marquise. A empresa foi escolhida por ser a maior consumidora de gás natural por unidade fabril, explica Ticiana Mota, vice-presidente Administrativo e Ambiental da Cerbras.
“Durante um período de seis meses, utilizamos só o biogás, e colaboramos para a regulamentação e validação desse biogás. Hoje em dia, a gente utiliza uma mistura, o biogás vem misturado na rede do gás natural”, afirma.
A executiva afirma que a empresa tem interesse de adotar integralmente o uso do biogás, mas não há oferta suficiente do combustível para atender a planta. A substituição do combustível é um das ações do plano de descarbonização da Cerbras, assim como a substituição da frota por veículos elétricos e o reflorestamento.
A indústria também foi pioneira a utilizar como matéria-prima do porcelanato um resíduo gerado no tratamento das pedras de mármore e granito. “Isso é economia circular, que seria uma mudança de chave no setor, se a gente descobrisse que resíduos de algumas indústrias podem se tornar nossa matéria-prima [...] O Ceará está sempre a frente, buscando ideias, trazendo as indústrias para esse lugar de sustentabilidade, de que realmente algo tem que ser feito”, avalia.
TECNOLOGIA AGREGADA ÀS GRANDES INDÚSTRIAS
O ecossistema do Estado também favoreceu à gigante dos calçados esportivos Vulcabras, dona de marcas, como Olympikus, Under Armour e Mizuno.
“O Ceará em termos de infraestrutura, geração de energia eólica e solar, tem nos favorecido muito. Outro fator é que já estamos com um grau alto de fornecedores locais, não só nativos do Ceará, mas também empresas que se deslocaram ou criaram filiais aqui”, comenta Marco Antônio, diretor de Engenharia Industrial da empresa.
A indústria utiliza, desde 2022, energia renovável em todas suas unidades fabris. No Ceará, a energia é fornecida pela Casa dos Ventos, com estimativa de eliminar a emissão de 15.600 toneladas de CO2 em 13 anos.
A unidade cearense também aposta na modernização do maquinário para diminuir a geração de resíduos. O investimento em tecnologia superou R$ 600 milhões nos últimos seis anos.
“Hoje nós estamos com redução de resíduos de cerca de 90%, mas a nossa meta é resíduo zero. A nossa unidade também recebe água bruta da Cagece e a água retorna para dentro da empresa na forma de irrigação ou uso sanitário, então temos praticamente um circuito fechado na reutilização da água”, afirma
Agregar tecnologia também às indústrias locais e aumentar a média de qualificação do mercado é um dos objetivos do Estado, segundo Luis Eduardo Barros, diretor de fomento da Agência de Desenvolvimento do Ceará (Adece).
O governo trabalha para criar um ambiente de atração às empresas de grande porte e alto grau de profissionalização, ao mesmo tempo que busca manter o montante de empregos gerados, conforme o gestor.
“Se você tem mais tecnologia, você fala de menos empregos, mas vai contratá-los para um valor maior. Então estamos fazendo essa transição, mas é importante destacar que a política não é alternativa. Eu não opto entre empresa de alta tecnologia ou baixa tecnologia. Nós estamos procurando manter esse equilíbrio, porque temos uma população de baixa qualificação, ao mesmo tempo que temos uma minoria altamente qualificada”, afirma.
A Adece defende aumentar a profissionalização, por meio de equipamentos como o ITA e o Senai, e crescer os incentivos fiscais para empresas de maior valor agregado - sem retirar os benefícios de empresas de baixa tecnologia.
O Governo do Ceará abre mão de R$ 3 bilhões em Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) de 350 indústrias. Um estudo em curso busca comprovar se o impacto indireto dos incentivos contribui para aumentar a arrecadação. O objetivo da SDE é aumentar o percentual de isenção fiscal às grandes indústrias, posicionando melhor o Ceará.
Quem inventou a guerra fiscal foi o Ceará, e aí os outros copiaram e copiaram até melhor. O que é um problema, porque nós estamos mais distantes de São Paulo, que é um grande mercado de matérias-primas e consumidores finais, e o frete pesa muito. Isso exige esforço para podermos equiparar os incentivos".
DA TROLLER À FÁBRICA MULTIMARCAS DE ELETRIFICADOS
A indústria automobilística é uma das que terá um grande avanço sediado no Ceará. A cidade de Horizonte, na Região Metropolitana de Fortaleza, terá a primeira fábrica de carros multimarcas do Brasil.
O empreendimento, anunciado no início de agosto, terá investimento inicial de R$ 400 milhões. O polo terá pelo menos três marcas consagradas e produção de seis modelos na fase preliminar.
A ideia é que carros de diferentes marcas sejam produzidos na mesma planta. O professor Antônio Jorge Martins, coordenador dos cursos automotivos da Fundação Getulio Vargas (FGV), destaca que o projeto representa uma inovação necessária em um momento que o setor automotivo passa por mudanças disruptivas.
“A fabricação não deixa de ser relevante, ela continua importante, mas deixa de ser prioritária em função de outros focos de atuação. Esse modelo de montadora que faz vários modelos significaria um avanço nessa indústria. O iPhone, por exemplo, é vendido no mundo inteiro sendo produzido por outra empresa que não a própria Apple”, afirma.
O modelo permite que uma única fábrica caminhe na direção da robotizar todas as linhas de produção. Entre os benefícios, está a racionalização da produção, redução de recursos e facilidade de exportação.
A multimarcas será instalada no terreno onde funcionou a Troller, montadora que teve a operação encerrada pela Ford no fim de 2021, assim como todas as unidades fabris do Brasil.
Ainda não foram divulgados quais marcas de carros terão produção no Polo Industrial Automobilístico, mas há garantia que serão fabricados veículos eletrificados - elétricos e híbridos. Antônio Jorge aponta que o empreendimento deve aumentar o potencial brasileiro nesse setor.
"Todos os esforços estão em desenvolvimento no sentido de permitir a maior competitividade das empresas, para fazer frente à elevação da competitivdade com a vinda das fábricas chinesas", explica.
POTENCIAL SUSTENTÁVEL PARA REVERTER DESINDUSTRIALIZAÇÃO
O processo de neoindustrialização ou reindustrialização visa retomar a participação desse setor produtivo na produção econômica. O Ceará, acompanhando um movimento nacional, viu a participação da indústria no Produto Interno Bruno (PIB) cair nas últimas décadas.
A participação da indústria no PIB brasileiro atingiu o pico em 1985, com 35,9% de representação. O número teve uma queda significativa em 1995 e mantém a trajetória descendente desde então. No último levantamento, de 2021, a indústria representou 11,3% da produção do país.
O processo de desindustrialização brasileiro foi precoce e começou a ocorrer antes que o País atingisse níveis avançados de desenvolvimento, avalia Lauro Chaves Neto, assessor econômico da Federação das Indústrias do Estado do Ceará (Fiec). A antecipação do processo traz prejuízos para a sociedade, com redução da renda e níveis de emprego.
O Ceará teria sido ainda mais afetado pelo processo devido às desigualdades regionais do setor industrial brasileiro, bastante concentrado no Sudeste. O incentivo federal para a neoindustrialização concomitante à corrida pela transição energética é uma oportunidade para o Estado crescer sua fatia na produção industrial nacional.
“O Ceará tem aproximadamente 4,4% da população brasileira, mas tem apenas 1,7% na participação do PIB industrial. Para você tirar essa diferença, precisa de um ciclo de três, quatro décadas de pesados investimentos”, afirma.
Lauro Chaves avalia que o Estado tem um diferencial competitivo na economia verde, e pode atrair mais investimentos que os demais estados. Um estudo encomendado pela Fiec e Governo do Ceará, conduzido pela consultoria norte-americana IXL Center, prevê que o Ceará deve atrair R$ 168,9 bilhões em investimentos em hidrogênio verde até 2031.
O assessor da Fiec pondera que as ações devem ocorrer de maneira integrada, abrangendo principalmente os setores tradicionais. “Se você pega o turismo, é um setor que movimenta uma série de cadeias. Podemos ter hotéis, restaurantes, transportes, todos movidos à energia renovável. Podemos ter a indústria têxtil, calçadista, siderúrgica liderando ações de sustentabilidade”, comenta.
INCENTIVOS ALÉM DO HIDROGÊNIO VERDE
O plano de neoindustrialização brasileiro, batizado pelo Governo Federal de ‘Nova Indústria Brasil’, visa financiar a ampliação do parque industrial brasileiro e aumentar a competitividade. A previsão é destinar R$ 300 bilhões até 2026 em expansão da capacidade produtiva, pesquisa, projetos de sustentabilidade, inovação e incentivos à exportação.
A política estabelece seis áreas setoriais: cadeias agroindustriais sustentáveis e digitais, complexo industrial da saúde, infraestrutura, saneamento, moradia e mobilidade, transformação digital da indústria, bioeconomia e tecnologias de interesse para soberania e defesa nacionais.
Segundo o economista Alex Araujo, o Ceará precisa investir no reforço dos outros setores industriais. “É necessário traçar objetivos de curto e médio prazo. Parece que o Ceará está apostando muitas fichas no H2V, que é uma aposta a longo prazo. Olhando para as missões do Nova Indústria Brasil, só atuamos na transição energética”, comenta.
Para atender às exigências de mercado e atrair empresas dos outros setores, ou expandir plantas já existentes, o Ceará deve adaptar a tecnologia e a logística das etapas do processo produtivo.
“A adoção de tecnologias da indústria 4.0, como automação, inteligência artificial e Internet das Coisas (IoT), permitirá que esses setores melhorem sua eficiência produtiva. O estado possui uma localização estratégica e uma infraestrutura que, se modernizada, pode facilitar essa integração e atrair investimentos estrangeiros”, aponta.
Alex Araujo ressalta que a produção do hidrogênio limpo deve ter os impactos previstos, mas que há desafios importantes no setor industrial que devem ser superados antes que a cadeia se desenvolva.
Segundo o economista, ainda é preciso definir qual a rota tecnológica será utilizada e a forma mais segura de transporte, pontos de debate no mercado global do vetor energético.
“É preciso adequar as expectativas e ajustar o foco do desenvolvimento do mercado de H2V no Ceará. Em vez de priorizar apenas a exportação, devemos explorar o uso industrial doméstico do H2V, aproveitando a energia limpa disponível para transformar a produção industrial local”, aponta.
A visão é reiterada por Luiz Eduardo Barros. “Óbvio que a gente precisa de exportação para gerar escala e com isso reduzir os custos. Mas está sendo considerado o uso do hidrogênio para o mercado interno. Hidrogênio é produzido todo dia no Ceará, lá na fábrica de margarina, na ArcelorMittal, mas com energia comum”, comenta.
O diretor de Fomento da Adece ressalta que o principal ponto da cadeia do hidrogênio verde é o aquecimento dos diversos setores produtivos e o barateamento da geração de energia renovável.