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Em uma época não muito distante dos nossos caóticos e proveitosos dias atuais, aos homens brasileiros cabia participar da vida pública, discutir temas relevantes, tornarem-se políticos, ocuparem cargos importantíssimos na gestão pública ou na iniciativa privada, tomarem decisões sobre o próprio destino, os rumos familiares, dos negócios e até sobre as direções a serem dadas a cidades, estados e ao país. Mais que tudo isso: aos homens era garantido o direito de estudar, se formar e ter diploma de ensino superior.  

Àquela altura, repito, não muito distante, às mulheres brasileiras competia, de modo geral, ter vivências muito restritas à vida familiar, experimentadas no interior dos lares, na intimidade, onde as funções tidas como “naturais” do feminino eram reiteradamente demarcadas: ter cuidado, se prendada, cultivar a maternidade. Nesse mesmo cenário: às mulheres era negado o direito de estudar, se formar e ter diploma de ensino superior. 

O que nos separa desse tempo é pouco mais de 140 anos. Em um país que só de colonização já registra 525 anos. No Brasil, foi somente em 1879, com o Decreto 7.247, de 19 de abril, que veio a permissão para as mulheres frequentarem o Ensino Superior. Claro, com “lugares separados para elas nas aulas”, diz a norma. 

No país, registra o trabalho de pesquisa de Francisco Bruno Lobo, a primeira mulher a se formar foi Rita Lobato de Freitas, brasileira do Rio Grande do Sul, que concluiu os estudos aos 21 anos, tendo colado grau 10 de dezembro de 1887 e o diploma expedido em julho de 1888 pela Faculdade de Medicina da Bahia.  

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No Ceará, esse pioneirismo só veio quase 40 anos após a permissão. E você tem ideia de qual graduação protagonizou esse avanço?  Para iniciar esse resgate histórico, vale registrar que esse curso foi instalado em 1903, no andar superior do antigo prédio da Assembleia Legislativa, o atual Museu do Ceará. 

O curso é a primeira formação superior reconhecida no Estado e pertence à Universidade Federal do Ceará (UFC) que, na época, ainda não tinha sido criada oficialmente, já que as faculdades de cursos específicos nasceram antes da universidade em si. A UFC tal qual conhecemos foi criada em dezembro de 1954, e instalada em 1955. Naquele momento, a Escola de Agronomia, a Faculdade de Direito, de Medicina e a de Farmácia e Odontologia já existiam. 

A presença das mulheres na formação superior no Ceará foi iniciada no Direito quando ao menos 2 universitárias ingressaram na turma de 1914 e se formaram em 1918, colocando grau em 1919. Logo, há cerca de 106 anos, o Ceará tinha então as primeiras mulheres sendo diplomadas no ensino superior. 

Legenda: Arquivos da Faculdade de Direito no Ceará que estão no Memorial da UFC
Foto: Thatiany Nascimento

Mas, quem eram elas? Você pode se perguntar. E foi exatamente o que fiz quando a curiosidade motivou a escrita desta edição da news. Saber o nome, o contexto, se são figuras conhecidas. Parti para a apuração e não encontrei tantas informações disponíveis assim sobre uma delas. 

Constatado o fato de que a Faculdade de Direito é a pioneira dentre os cursos existentes, - fato registrado pela UFC e pela literatura acadêmica, incluindo um livro de Raimundo Girão -, buscar nos arquivos da instituição foi o caminho. A obra de Raimundo Girão indica que, em 1914, a turma tinha 99 alunos matriculados e 6 não matriculados (que eram admitidos como 'alunos especiais'). 

Esse resgate é possível devido a uma obrigação imposta pelo próprio regulamento da Faculdade que exigia a produção anual de um relatório das "memórias históricas". O documento era feito por um dos membros do curso e apresentado no início do ano letivo seguinte. A prática perdurou de 1903 até 1915. A UFC guarda esses registros. 

Legenda: Fichas das primeiras universitárias formadas no Ceará
Foto: Thatiany Nascimento

Em 1914, as memórias foram redigidas por Tomás Pompeu. Nelas consta que o poeta Irineu Filho era da turma das mulheres pioneiras, que são: Odete Correia de Meneses e Henriqueta Galeno. Os três universitários compunham a turma que concluiria em 1918 e receberia o grau em 1919. 

Naquela época, registra o livro de Raimundo Girão, devido à gripe espanhola o Governo teve que conceder aos estudantes o direito de concluírem o curso superior sem a realização dos exames finais. Parte da turma se valeu dessa prerrogativa, enquanto outros  - incluindo ao menos uma das mulheres - optou por submeter-se às provas para aprovação. 

O livro também reporta que o poeta Irineu Filho retratou os colegas de turma em versos. Odete Meneses, a primeira mulher a ser diplomada, é descrita da seguinte forma: 

Pequena, ruiva, cândida, risonha
franzina compleição, redondo rosto, 
olhar triste de ocaso, ou de sol-pôsto,
e mudez penserosa de quem sonha

Mas, por ser muda assim, não se suponha
que esse mutismo vem de algum desgosto de amor; 
vem, ao contrário, do bom gosto
de quem de falar muito se envergonha

Durante o curso inteiro de direito,
não perdeu o nativo acanhamento, 
que é o melhor apanágio da donzela

O seu fim, entre nós, eis satisfeito,
pois representa um acontecimento:
 - segunda saia que se bacharela!...

Uma homenagem no qual o “acanhamento” feminino é celebrado como qualidade. O que achamos disso agora, pouco mais de 100 anos depois?  

Sobre Henriqueta Galeno, figura conhecida, há registro na obra que ela era filha de Juvenal Galeno e Maria do Carmo Galeno, pertencia a Academia Cearense de Letras e dirigia a "Casa de Juvenal Galeno", fundada por ela. Foi também escritora e professora do Liceu do Ceará e da Escola Normal. Uma pioneira em múltiplas áreas da luta das mulheres no Estado e cuja história tem um certo grau de visibilidade.  

Legenda: Henriqueta Galeno pertencia a Academia Cearense de Letras e dirigia a "Casa de Juvenal Galeno", fundada por ela.
Foto: Divulgação Academia Cearense de Letras

Na UFC, em visita ao Memorial cujo acervo fica no prédio da reitoria e no Centro de Humanidades III, no Benfica (inclusive, que espaço importante!), foi possível consultar as fichas da Faculdade de Direito, nas quais constam, na de Odete, que ela iniciou o curso em maio de 1914 e colou grau em janeiro de 1919 e na de Henriqueta, que ela também começou em maio e colou grau em abril de 1919. 

Mulheres que abriram caminhos, ao seu modo, para um cenário que hoje felizmente avança. No Brasil, a inserção das mulheres na universidade foi um processo historicamente tardio, marcado por barreiras sociais, culturais e institucionais. Isso em um país que, conforme já abordado por essa news, é de professoras, já que nas salas de aula brasileiras, a cada 10 profissionais que estão dando aula na educação básica - nível que contempla creches, pré-escola, ensino fundamental e médio - 8 são mulheres. 

Reconhecer esse passado é um passo na compreensão do contexto atual e da necessidade de ampliar não apenas o número de mulheres na universidade, mas também a representatividade em diferentes campos e níveis.

Quem entrou tardiamente e ainda batalha para permanecer é também quem garante um ambiente acadêmico mais diverso, inclusivo e capaz de refletir a complexidade da nossa sociedade. Que portas abertas (com muito custo) em tempos outros não voltem a fechar. Que nós mulheres sigamos na universidade!