De revolucionário a nome de rua: quem foi Padre Mororó, fuzilado em praça do Ceará há quase 200 anos
Em alguma sepultura do Cemitério São João Batista, o mais antigo em atividade em Fortaleza, estão enterrados os restos mortais de Gonçalo Inácio de Loiola Albuquerque e Melo, assassinado em uma praça pública de Fortaleza, em 1825. Mais conhecido na historiografia como Padre Mororó, curiosamente ele dá nome à rua onde está localizado o próprio cemitério.
Há quase 200 anos, ele foi um dos principais expoentes do movimento político que ficou conhecido como Confederação do Equador, que pretendia emancipar os estados do Nordeste dos domínios de Dom Pedro I e instalar um regime republicano baseado numa Constituição de base popular.
Por seu envolvimento na “traição”, o sacerdote foi acusado de três crimes: proclamar a República de Quixeramobim; ser secretário do governo revolucionário de Tristão Gonçalves, e redigir o “Diário do Governo do Ceará”, primeiro jornal impresso do Estado. Foi executado a tiros de arcabuz - um tipo de espingarda - no dia 30 de abril de 1825, no Passeio Público, em Fortaleza.
Mas de onde veio essa inspiração revolucionária? Para remontar a história de Mororó e sua relação com a Confederação, o Diário do Nordeste consultou especialistas que estudaram a fundo a tentativa de revolução e relatos históricos disponibilizados pelo Instituto do Ceará (Histórico, Geográfico e Antropológico), fundado em 1887.
Gonçalo nasceu no dia 24 de julho de 1778, no Riacho do Guimarães, atual cidade de Groaíras, no sertão de Sobral. Iniciou os estudos no interior e, ainda jovem, foi enviado para o Seminário de Olinda, em Pernambuco, onde se ordenou. À época, o local era um importante centro de disseminação de ideias liberais e constitucionalistas.
Mororó também foi secretário do Grande Conselho que instalou o governo revolucionário de Tristão Gonçalves, no dia 26 de agosto do mesmo ano, em Fortaleza.
De volta ao Ceará, foi capelão nas vilas cearenses de Boa Viagem, Tamboril e Quixeramobim. Foi na Câmara desta última que, incitado pelos ideais difundidos por Frei Caneca no estado vizinho, ele idealizou a histórica sessão de 9 de janeiro de 1824.
Naquele dia, com a reunião do clero, de pessoas influentes e do povo, proclamou a primeira República do Brasil, anunciando o rompimento com a monarquia de Dom Pedro I. Depois, se tornou redator do primeiro jornal do Ceará, publicado entre abril e novembro, que durou 19 edições.
De onde veio o nome Mororó?
Com a revolução, ele decidiu se denominar “Mororó” por nacionalismo típico da época, quando os líderes do movimento optaram por adicionar nomes indígenas, de animais, plantas ou termos geográficos de cada região. Valorizavam, assim, as raízes nordestinas e rompiam com influências europeias.
Mororó, palavra de origem tupi e mais adotada no semiárido, denomina uma espécie de árvore de pequeno porte, com caule de casca fibrosa e flores brancas. Como as folhas têm forma parecida ao rastro da pata de bovinos, em algumas regiões a planta também é chamada de pata de vaca ou unha de vaca.
Segundo o Núcleo de Ecologia e Monitoramento Ambiental (Nema) da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), a espécie tem grande importância socioeconômica na caatinga porque diversas comunidades a utilizam como forrageira. Com alto teor de proteínas, as folhas são consumidas por criações de animais. A madeira também é utilizada em construções e cercas e como combustível.
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Rompimento com o Império
Para os revolucionários, o imperador D. Pedro I foi autoritário ao dissolver, em novembro de 1823, a Assembleia Geral Legislativa e Constituinte que ele mesmo havia instalado para escrever a primeira Constituição do Brasil. O monarca optou, em vez disso, por criar uma nova norma sem consulta às províncias e com um quarto poder exclusivo a ele.
Mesmo próximo ao Governo e nomeado professor de latim em Aracati, Mororó mantinha as “tentações revolucionárias” dos colegas sacerdotes pernambucanos e declarou destronada a dinastia dos Bragança em Quixeramobim.
“O padre Mororó foi o nosso Frei Caneca do Ceará”, considera o general Júlio Lima Verde, presidente do Instituto do Ceará, apontando semelhanças entre os dois sacerdotes pela difusão de ideias iluministas, edição de jornais que pregavam a crítica política e a liberdade constitucional e destino trágico pela bala.
O padre Mororó está por trás disso. Ele era um orador muito bom e escrevia muito bem, foi isso que o fez ser o redator do primeiro jornal. Uma pena ele não ter se salvado. Quem assumiu após o Tristão Gonçalves mandou queimar tudo que se relacionasse à Confederação, por isso não temos quase nada escrito dele.
Capturado pelas forças repressoras do Império, Mororó chegou a acreditar num suposto perdão real, mas as recomendações do governador monarquista Costa Barros - que o chamou até de “demônio” em determinado informe - não lhe eram favoráveis.
Para Liduíno de Brito, diretor geral da Fundação Sintaf de Ensino, Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico, Científico e Cultural (Fundação Sintaf), a repressão desproporcional no Ceará ocorreu porque Dom Pedro nunca perdoou os escritos do padre. “Não tinha como ele escapar”, explica.
Últimos momentos do padre
Preso pelo Império, Mororó foi condenado ao enforcamento, mas não havia quem quisesse servir de executor. Assim, teve pena alterada para fuzilamento. Os últimos momentos dele foram narrados pelo escritor maranhense Viriato Corrêa e até hoje são reproduzidos em livros didáticos pelo Brasil
A execução foi marcada para 30 de abril de 1825. Ansiosa por assistir pela primeira vez ao fuzilamento de um padre, às 7h da manhã, a população já lotava o Campo da Pólvora, no Centro de Fortaleza.
Chega escoltado um “homem de cabeça branca, rugas no rosto, envelhecido”. Ele é posto na coluna da morte e um soldado oferece-lhe uma venda, mas Mororó rejeita. Outro estende-lhe um pequeno alvo de papel, mas ele também o recusa.
“Eu mesmo farei o alvo”, teria dito, cruzando as mãos sobre o coração. Pediu um tiro certeiro, para não sofrer muito. “Capricharam tanto na pontaria que três dedos caíram no chão, decepados”, conta o general Lima Verde. “Ele morreu instantaneamente”, aos 46 anos.
Em abril de 1880, diversas personalidades ilustres foram exumadas do antigo Cemitério São Casemiro e transferidas para o Cemitério São João Batista. Entre elas, o destemido padre.
Mas onde fica o túmulo dele? A pesquisadora e guia do cemitério, Layane Gadelha, conta à reportagem que nunca conseguiu identificar o jazigo do sacerdote. Ela teoriza que, como à época os confederados talvez ainda fossem mal vistos, nunca foi construído um jazigo próprio para ele.
Tampouco algum amigo se prontificou a construir um local único. “Imagino que os restos mortais do Padre Mororó não tenham sido reclamados. Pelo menos, não a tempo”, acredita.
Para homenagear o sacerdote revolucionário, quase 200 anos após sua morte, a Fundação Sintaf e o Instituto do Ceará criaram uma medalha alusiva ao Bicentenário da Confederação; de um lado, foi cunhada a bandeira do movimento e, no verso, uma imagem do padre com seus dados biográficos.
Mortos no Passeio Público
Após a série de fuzilamentos de participantes da Confederação do Equador, o Campo da Pólvora ficou conhecido como “Praça dos Mártires”, hoje mais usualmente tratada como Passeio Público. Além de Mororó, nele morreram:
João de Andrade Pessoa “Anta” (1787-1825)
Fuzilado no mesmo dia do padre, nasceu em Granja, foi comerciante e capitão-mor. Por ter tido cargo militar relevante, foi condenado à morte após a adesão ao movimento.
Francisco Miguel Pereira “Ibiapina” (1774-1825)
Sobralense e pai do famoso padre Ibiapina, era “tabelião e letrado”. Também envolveu-se com a Confederação pelo descontentamento com a dissolução da Constituinte e foi eleito para o conselho federativo de Pernambuco. Derrotado o movimento, também foi declarado culpado e morto em 7 de maio.
Luiz Inácio Azevedo “Bolão” (1785-1825)
Baiano, mudou-se para o Ceará e incorporou-se às tropas de Tristão Gonçalves. Preso em Santa Rosa, mesmo local onde o líder morreu, foi fuzilado em 16 de maio.
Feliciano José da Silva “Carapinima” (1781-1825)
Militar mineiro, chegou ao Ceará em 1820 e foi secretário do governador Francisco Rubim antes da Independência. Apesar dos apelos de Félix de Azevedo e Sá, substituto de Tristão e considerado “vira-casaca” pelos confederados, também foi condenado à morte e fuzilado em 28 de maio de 1825.
O general Júlio Lima Verde explica que a reação dos carrascos imperiais no Ceará teria sido desproporcional. O Governo sediado no Rio de Janeiro teria enviado uma correspondência ordenando que ninguém mais fosse morto por participação no movimento. Contudo, dada a distância, a comunicação só chegou em 30 de maio.
“Quem tinha que ser fuzilado já tinha sido fuzilado”, lamenta o estudioso. “Foi uma reação rápida demais. Ainda bem que isso não ocorreu em 1817, ou Bárbara de Alencar e os filhos teriam sido fuzilados antes de participarem da Confederação”.
Na reportagem de amanhã, você acompanha projetos históricos e culturais que buscam resgatar a memória das principais figuras que marcaram o movimento no Ceará.