Em uma das inúmeras salas de aula da Universidade Federal do Ceará (UFC), no bairro Benfica, em Fortaleza, 46 anos separam o professor do aluno mais velho da turma. O docente tem 27 anos, e o estudante do curso de Arquitetura e Urbanismo, 73 anos. O ingresso na universidade, do idoso que é morador do Passaré, casado há 49 anos, pai de 8 filhos e avô de 11 netos, ocorreu quando Francisco Verdiano tinha 70 anos. Ele é o graduando mais velho de toda a instituição, que no universo de 27 mil estudantes matriculados, conta com 58 alunos cuja idade é 60 anos ou mais.  

Nesse pequeno universo que representa apenas 0,28% do total de universitários da UFC, as motivações para estar no ensino superior são diversas: vão do desejo de conclusão de uma formação que não foi possível na juventude à ocupação da mente, à socialização e à realização de sonhos pessoais e aspirações intelectuais. 

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Na UFC, os 58 idosos estão presentes em 26 cursos diferentes. Desse total, apenas um estudante não frequenta os campi  de Fortaleza, pois cursa Medicina na unidade de Sobral. As graduações em Letras e Engenharia de Pesca, conforme dados da própria UFC, são as que contam com a presença de mais idosos: seis em cada um dos cursos. 

Na Arquitetura, Verdiano, como faz questão de ser chamado, já que “Franciscos são tantos e Verdiano é mais próprio”, o estudante mais velho da universidade tem se reencontrado e materializado desejos que os acompanham desde jovem. Mas, isso não ocorre sem desafios, obstáculos e tensões, relembra ele. Dinâmicas próprias de um processo no qual o choque de gerações na educação é inegável, em salas de aulas que concentram, sobretudo, jovens recém-saídos do Ensino Médio. 

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Legenda: Francisco Verdiano tem 73 anos e é estudante do curso de Arquitetura e Urbanismo
Foto: Fabiane de Paula

Na história de Verdiano, os colegas de sala ganham status de “netos”. Diversos deles conhecem pouco sobre o “avô” presente na sala, que nascido no Sítio Santa Maria, na Serra da Meruoca, no Norte do Ceará, é filho de um casal que teve outros 20 filhos. Na infância, vivenciada em outra cidade da mesma região, Forquilha, foram raras as oportunidades de acesso à educação. As privações relacionadas à pobreza o fizeram trabalhar na agricultura e ele só ingressou formalmente na escola aos 15 anos. 

“Quem nascia no interior, naquela época, não tinha nem registro de nascimento. Era criado que nem maxixe no campo”, aponta a analogia para registrar os obstáculos da própria história. Quando chegou à escola, já era adolescente. “Eu sempre digo aos meninos (colegas de sala), quando eu me identifico, que eu fui forjado na foice do machado, minha caneta foi a enxada, capinando, brocando, apanhando oiticica, feijão, na luta mesmo do interior. Com 15 eu cheguei para minha mãe e disse: vamos morrer pobres? Analfabetos? Minha mãe tirou a gente de Forquilha e levou para Sobral”.
Francisco Verdiano
Universitário

Nessa fase da vida, matriculado na escola, conciliava os estudos com a atividade de servente de pedreiro. Em Sobral, fez “o ginásio e o científico”, equivalentes aos ensinos fundamental e médio atualmente. Em seguida, fez um curso de Engenharia Operacional que, na época, tinha status de curso superior, e hoje é uma formação técnica. Concluiu ainda na década de 1970. 

"Fiz o curso de engenharia, mas meu sonho não era ser engenheiro. Meu sonho era ser médico, queria fazer engenharia para construir o meu hospital, ser advogado para defender as causas do meu hospital, ser arquiteto para modelar o meu hospital e ser contador para fazer a contabilidade do meu hospital", relata. 

No decorrer da vida também fez Ciências Contábeis e trabalhou no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e na Caixa Econômica, sempre como escriturário realizando tarefas administrativas básicas.

Em 2021, essa trajetória foi se transformando, justamente quando retornou à universidade, com mais de 70 anos. Hoje, Verdiano está no 8º semestre do curso, nesse tempo “só perdeu 2 dias de aula”, e é o estudante mais idoso da UFC.

Na instituição, o aposentado, que é o único idoso no curso de Arquitetura, compartilha a condição de ser um graduando com 60 anos ou mais com outros 57 estudantes. Dentre eles, Maria Desiree Diniz Miranda, 66 anos, também aposentada e aluna de Letras Português-Italiano, no Centro de Humanidades. É também a única idosa do curso.

Nascida em Pernambuco e residente do Ceará há 35 anos, Desireese define como “cearana” e relata que “sempre foi estudiosa”, mas que imposições sociais de tempos passados, como casar precocemente, a fizeram constituir família ainda muito jovem, tendo três filhos.

Aos 16 anos, ela já estava empregada no Banco do Nordeste, instituição onde trabalhou até os 60 anos. Nessa etapa da vida, aos 17 anos ela passou em Administração na Universidade Federal de Pernambuco, mas ao casar “deixou a faculdade de lado”. 

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Legenda: Maria Desiree Diniz Miranda tem 66 anos e cursa Letras Português-Italiano no Centro de Humanidades
Foto: Fabiane de Paula

Desiree ficou viúva aos 29 anos anos e relembra que, quando jovem, “não tinha tempo para estudar”. Essa “folga” veio há poucos anos na vida da estudante que é mãe, avó e bisavó. 

“Eu trabalhei a vida toda, e quando me aposentei, pensei: o que eu vou fazer? Meus filhos são casados. Aí fui fazer curso. Fiz curso de padeiro, e veio a pandemia. Aí, um dos meus netos estava dando trabalho na escola, em tempo de reprovar, e eu pedi para ele ficar comigo. Passamos quase 2 anos juntos. Ele passou na escola. E depois desse período, eu tinha revisado muita coisa para o Enem”, relembra. 

Desse processo, veio a oportunidade de tentar a prova do Enem em 2021. O objetivo, recorda, era tentar ingressar no curso de Direito. Não foi possível e ela escolheu Letras Português-Espanhol. Entrou no curso e em 2023 decidiu, por questões de horário e oferta de disciplina, transferir para Letras Português-Italiano. 

No curso, ela já fez todas as disciplinas relacionadas à literatura e as optativas. Agora, cursa as obrigatórias que têm relação com a linguística. “Entrei em letras achando que sabia português, mas a turma é muito afiada. Quando comecei, pensei: onde foi que eu me meti. Entendi que tenho que buscar a base para poder acompanhar a turma que é muito boa”, ressalta.  

Na rotina da graduação, Desiree, nesse semestre, só não tem aulas às terças-feiras. Nos demais dias, comparece à sala de aula, utiliza a biblioteca, almoça no Restaurante Universitário, faz atividades complementares. Uma rotina lhe assegurada por direito, como a outras tantas centenas de universitários que cotidianamente movimentam as dependências da UFC.  

Convivência intergeracional na universidade

Na trajetória de Verdiano, ele explica que também queria cursar Direito. Por isso, tentou o Enem em 2018, 2019 e a aprovação, via Sistema de Seleção Unificada (Sisu), veio em 2020.

“A primeira opção era Direito e a segunda era Arquitetura e passei para Arquitetura. Hoje eu fico muito feliz por não ter passado em Direito e estar na Arquitetura que está combinando com a minha engenharia e com a minha prática que, desde os 7 anos, eu trabalho com meu pai”, completa ele. 

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Legenda: Francisco Verdiano ingressou na graduação aos 70 anos
Foto: Fabiane de Paula

Na universidade, ambos concordam: a idade é um marcador, mas não um limitante absoluto.

“A idade pesa aqui. Os meus colegas são todos jovens. Jovens de 18, 19 e 20 anos. Então, existe aquela coisa: vai formar uma equipe para fazer um trabalho, o velho fica de fora. Porque a maneira é diferente, as risadas, as brincadeiras. A maneira como eles veem o mundo é diferente. Esse é um sofrimento. Mas não porque os meninos são ruins, são circunstâncias da idade, da vida”, pondera. 

Já Desiree opina que na sua realidade, os demais estudantes, que são muitos anos mais jovens, “são muito acessíveis, têm muita paciência comigo”.  Outro ponto de destaque, é a transformação pessoal gerada pela formação. 

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Legenda: Desiree avalia que em sua sala de aula não há dificuldade de inclusão
Foto: Fabiane de Paula

“Minha cabeça mudou. Digo isso não somente por mim, mas pelo depoimento da minha neta: vó, você é outra pessoa. Por exemplo, eu critiquei muito meu filho mais velho quando ele fez uma tatuagem. E aqui eu fiz uma tatuagem. Fiz uma poesia no dia que fiz essa tatuagem porque para mim era um rito de passagem. Então, eu me tornei mais flexível, tolerante. Minha cabeça abriu muito. A universidade já diz: a universidade é o mundo”. 
Maria Desiree Diniz Miranda
Universitária

Em seu caso, destaca, a percepção na sala de aula é que não há dificuldade de inclusão: "sobre barreiras, eu não percebo. Se eles têm em relação a mim, eu não percebo. Eu não tenho em relação a eles. Eu sou muito bem tratada. Às vezes, eu vou andando aqui e um ou outro aparece, me dá o braço (para apoiar). Me tratam com muito cuidado". 

O processo também tem relação com autopercepção: “eu me olho no espelho e não me vejo velha. Eu sei que eu tenho rugas, tenho manchas, às vezes o corpo dói um pouquinho, mas eu não me vejo velha”, completa. 

Na formação ela se define como dedicada e é enfática ao dizer que não está na UFC “para brincar”. “Eu levo a sério porque é gratificante. Estou aqui para escrever, estudar, me esforçar. Não estou fazendo nada de mentirinha e sei que estou em uma vaga que muitas outras pessoas gostariam de estar”. 

Obstáculos na formação

Na trajetória de Verdiano, uma das primeiras barreiras no acesso ao ensino superior quando já era uma idoso veio dentro da própria casa. A situação que hoje, segundo ele, já foi contornada, não o desanimou.

“Tive problemas com minha esposa quando decidi fazer o curso porque ela teve resistência, por conta da minha idade. Eu disse pra ela que: posso ter cabelos brancos, minha pele pode estar ficando enrugada, mas minha cabeça é de 18 anos, minha vontade é a mesma de um menino que não tem uma bicicleta é tá louco para adquirir. Então, eu tenho gana, uma vontade tão grande de ser culto, ser inteligente. Tenho muita vontade de aprender”, aponta ele. 

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Legenda: Na UFC há apenas 58 idosos nos cursos de graduação
Foto: Fabiane de Paula

Em ambos os casos, as barreiras são percebidas sobre na relação com dispositivos tecnológicos. Na Arquitetura Verdiano enumera uma série de restrições ligadas ao domínio de tecnologias digitais, produção de mapas, acesso à videochamadas. A condição de saúde que faz com que a visão do aposentado seja comprometida também é um fator que o restringe em certa medida. 

“Os meninos (demais alunos) nasceram com computador. E eu tenho dificuldades. Mas na hora que eu peço socorro a eles seja no whatsapp, na sala de aula, eles estão lá disponíveis, solícitos, com uma gentileza fora do comum para me ajudar. Em todas essas turmas, esses meninos são minha força, minha sustentação. Sem eles talvez eu não conseguisse. A gentileza e compreensão dos professores também me ajuda muito".
Francisco Verdiano
Universitário

Desiree também “se queixa” do mesmo fator. “Tenho muita humildade e peço ajuda. Usar computador, dispositivos, eu até sei, mas na hora de instalar algo, de acessar, eu, às vezes, não consigo”, explica. 

Essas barreiras, de modo geral, acabam sendo contornadas por duas vias, segundo as percepções dos dois estudantes: a flexibilidade e atenção dos professores e a assistência contínua dos colegas de sala. Dimensões de um processo de inclusão que envolve pessoas com 60 anos ou mais, mas que se replicam em tantas outras formas de acolhimento à diversidade nos ambientes de formação. 

Presença ainda limitada

No Ceará, o número de idosos nas universidade tem crescido lentamente, segundo dados do Censo da Educação Superior, divulgados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e pelo Ministério da Educação (MEC). Em 2024, no agrupamento de universidades federais, estaduais, privadas e sem fins lucrativos sediadas no Estado, 566 pessoas com 60 anos ou mais estavam matriculadas. Em 2020 eram 395 matrículas do tipo em instituições com essas mesmas classificações. 

O titular da Coordenadoria de Planejamento, Informação e Comunicação (COPIC) da Pró-Reitoria de Graduação (Prograd) da UFC, Júlio Barros, admite que o quantitativo ainda “é pequeno”.

Diante disso, diz ele, “estamos avaliando nossas atuais formas de ingresso, em termos de ocupação de vagas e público-alvo, bem como mensurando possíveis ociosidades nos diversos cursos. Novos editais poderão ser lançados para diferentes públicos. Para isso, futuramente, serão elaborados normativos próprios para tal finalidade”.

Questionado se a UFC tem políticas específicas para estimular ou apoiar o ingresso e a permanência de idosos na graduação, ele pondera que a partir de diagnóstico que estão sendo feito como a avaliação dos indicadores de ingresso e de permanência, “a ideia é desenvolver políticas para incentivo de ingresso e acompanhamento dos cursos, com o objetivo de mitigar as dificuldades, tanto nos aspectos acadêmicos quanto de condições de permanência”. 

Júlio também reforça que nesse processo de inserção de idosos na universidade é possível que além do choque de gerações, ocorra também “algumas dificuldades de assimilação muito em função da base de conhecimentos do ensino médio, isso pelo tempo de sua conclusão. Entretanto, as experiências de vida também serão importantes para superar quaisquer dificuldades que os novos ingressantes venham ter”.

Enfrentar o etarismo

Quando estudantes de diferentes gerações compartilham a mesma sala de aula, diz a pesquisadora e professora da Faculdade de Educação da UFC, Kelly Menezes, a “dinâmica se transforma e revela tensões significativas. A presença de idosos escancara contradições de uma sociedade que, embora proclame o direito à educação ao longo da vida, ainda mantém práticas e estruturas etaristas que naturalizam sua exclusão”. 

Essa convivência intergeracional nos ambientes de formação, pondera, “pode enriquecer o aprendizado, desde que haja abertura ao diálogo e valorização da diversidade etária como legítima. Caso contrário, diferenças de repertório, linguagem e expectativas acabam se convertendo em barreiras. Cabe à instituição e ao professor enfrentar o etarismo na universidade, criando práticas pedagógicas inclusivas que não infantilizem nem marginalizem os idosos, mas os reconheçam em igualdade de condições”. 

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Legenda: Ambos os idosos estudam na UFC no Benfica
Foto: Fabiane de Paula

A presença da população idosa, reforça, “não é apenas oportunidade de troca, mas um chamado a repensar criticamente a própria concepção de universidade”. A professora também enfatiza que ingresso de pessoas com 60 anos ou mais na universidade evidencia desigualdades históricas de acesso e a ausência de políticas públicas que tratem a educação como processo contínuo. 

“Para os colegas, a convivência pode significar tanto oportunidades de diálogo quanto conflitos, já que diferenças de ritmo, linguagem e expectativas geram estranhamentos em uma sociedade marcada pelo culto à juventude e pelo etarismo. Para os professores, o desafio é rever metodologias e posturas pedagógicas, evitando exclusões e reconhecendo que esses sujeitos não estão fora do tempo, mas exercendo um direito negado durante grande parte da vida”. 
Kelly Menezes
Pesquisadora e professora da Faculdade de Educação da UFC

Outro ponto considerável dessas experiências é que esse processo de inclusão na universidade “pode ter papel decisivo na qualidade de vida e no envelhecimento saudável”.

Contudo, essa visão, argumenta a professora, não deve ser visto de forma idealizada já que estudantes idosos não estão apenas “preenchendo o tempo”, mas sim exercendo um direito “historicamente negado a uma parcela significativa da população, em um país que envelhece cada vez mais, mas cuja população idosa ainda encontra mais restrições quando chega a esta etapa da vida”. 

Ela também avalia que há desafios pedagógicos específicos diante da presença de idosos na universidade, “que não se restringem à sala de aula”. Ao contrário, perpassam toda a estrutura institucional. 

“Esse público é diverso: alguns lidam bem com as demandas acadêmicas, enquanto outros encontram maiores dificuldades no uso de tecnologias digitais, no ritmo de leitura e escrita ou na linguagem acadêmica. Além disso, há barreiras físicas e arquitetônicas, de comunicação e informação, tecnológicas e atitudinais, que precisam ser superadas. Preparar-se para esse processo significa rever metodologias, currículos e formas de avaliação, sem infantilizar nem superproteger”, reforça. 

Em uma das salas de aula do prédio do curso de Letras Português Italiano, onde Desiree estuda, a professora do Departamento de Línguas Estrangeiras da Unidade Curricular do Italiano, Fernanda Suely Muller, destaca que embora a estudante tem uma diferença maior de idade em relação aos demais graduando, “ela vem de outras experiências, outras vivências. Ajuda muito os alunos nas atividades e acaba por gerar uma grande rede”.

Fernanda tem exatamente a mesma idade do filho mais velho de Desiree, 43 anos. E, ao abordar a inclusão de idosos na universidade , reverbera pontos centrais para a garantia de acolhimento de qualquer tipo diversidade nos processos da educação: "Para a gente, enquanto professor é sempre um desafio. Nas salas de aula, mesmo quando eles (alunos) têm idades semelhantes, elas não são heterogêneas. Cada aluno vem de uma realidade diferente. E a gente, como professor, tem que contemplar essas diferenças”, finaliza.