Por causa da emergência de uma inesperada pandemia, a humanidade viu-se numa corrida contra o tempo. O objetivo imediato foi o de se adaptar, de forma a minimizar a força com que seria golpeada pela Covid-19. Drogas e tratamentos de comprovada eficiência contra outros males foram testados, num esforço para restabelecer a saúde dos casos mais graves da doença. Busca-se, desde então, sem descanso, uma vacina capaz de imunizar a população.
De par a par no mundo, acompanha-se o dia a dia dos cientistas, com não uma, mas várias vacinas sendo estudadas e testadas. Assiste-se, portanto, à humanidade respondendo a uma ameaça como vigor de sua engenhosidade, do progresso.
Se os avanços da ciência mostram o quão longe o gênero humano pode ir, não faltam episódios que atestam sua relutância em deixar no passado o que nem sequer nele deveria ter tido espaço. É não apenas inadmissível, como anacrônico que no presente se vejam repetidas cenas repulsivas de uma mentalidade torpe e atrasada.
Dois crimes recentemente registrados no Ceará deram testemunho do potencial destrutivo da misoginia e do machismo. Em ambos os casos, manifesta-se uma ideologia arcaica e mortal, que objetifica a mulher, a toma por posse e busca justificar o emprego da violência como pretensa defesa do que se entende por uma propriedade.
No primeiro episódio, em Fortaleza, um homem foi assassinado em público, nas dependências de um restaurante. O suspeito era ex-companheiro da namorada da vítima. Teria alegado, quando de sua prisão, que o fato teria se dado “por questão de honra”. Dias depois, no Centro de Milagres, no Sul do Ceará, uma mulher foi assassinada a tiros, no local de trabalho. O suspeito seria, mais uma vez, um ex-companheiro, com suposto histórico de agressão à vítima.
Com base nos últimos dados consolidados, referentes ao ano passado, o Brasil registra um caso de feminicídio a cada 7 horas. Se for considerado o ano corrente, a média pode pontuar ainda mais alto. Levantamento mensal é realizado pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) identificou um aumento de casos de feminicídio de pelo menos 2% nos seis primeiros meses do ano. No mesmo período, as chamadas de emergência para denunciar casos de agressões domésticas contra mulheres subiram 3,8%.
A oscilação não deve ser minimizada. Um estudo anterior, divulgado em junho, produzido também pelo FBSP, a pedido do Banco Mundial, mostrou que os casos de feminicídio cresceram 22,2%,entre março e abril deste ano, primeiros meses da pandemia, que marcam também o início dos períodos de isolamento mais rigorosos. O isolamento, necessário para se conseguir frear o avanço da Covid-19, trouxe como efeito colateral de deixar vítimas conviverem por mais tempo com seus agressores.
Feminicídio é um crime bárbaro, que remete aos momentos mais incivilizados das sociedades. Não há espaço para ele no tempo presente, por destoar não apenas de onde a civilização chegou como para onde ela projeta chegar. Romper esse ciclo vicioso, que joga a sociedade de volta a um passado negro, requer um envolvimento de todos – do cidadão e de suas instituições. Apenas assim será possível dar fim a esta prática bárbara.