'Rio Sangue' recria o Nordeste, o sertão e o mundo

“Conte-me uma história”. Assim começa “Rio Sangue”, novo romance do cearense Ronaldo Correia de Brito — nascido em Saboeiro e criado no Crato. E não é qualquer história que se conta nesse livro. É uma saga extraordinária sobre a formação do Nordeste brasileiro, com todas as brutalidades e algumas bonitezas capazes de explicar o que somos e de que barro viemos.

José e João eram ainda meninos de tudo quando desembarcaram no Recife, vindos do norte de Portugal. A família chega ao Brasil-Colônia com toda a ganância nas narinas. José se torna padre, mesmo com certo desgosto; João vira o cão do segundo livro, desbravador embrutecido sob o solzão dos trópicos. Pobre-rica Catarina nas mãos desse homem.

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Metidos em uma peleja sem fim, os irmãos são personagens inesquecíveis em um drama de contrastes. Um vacilante nas suas crenças, mas com uma queda para a delicadeza; o outro rude e interesseiro, sem pena, cheiro de morte nas ventas, nem aí para os extermínios e as dores do mundo.

Nas beiradas do mesmo rio de ingazeiras e narrações, vemos Páscoa — um dia no paraíso dos jucás, ela foi a indígena Micaela — e o negro Kayin, carregado por seus orixás e as feridas acesas da escravidão do Brasil. Ele também recebe outro batismo: passa a se chamar Fabião, vaqueiro como o Fabiano retirante de “Vidas Secas”.

De olhos fechados para o pecado e carne trêmula de todas as tentações, o padre faz dez meninos com Páscoa. E não se fala sobre isso debaixo daquela cumeeira. Só as réstias do sol que invadem a casa sabem dos segredos inconfessáveis.

"Seguiu até o Icó, onde em nome da moral cristã e da pureza da fé julgou os acusados de mancebia, de costumes judaicos e de possessão diabólica". Aqui se conta como o mesmo José, entre o pecado e as fraquezas do corpo, comunga a hipocrisia em julgamento da Santa Inquisição. O pecador na pele de autoridade perversa da Igreja Católica Apostólica Romana.

“Rio Sangue” é um livro com a marca do extraordinário escritor e médico cearense radicado no Recife. Um lançamento da editora Alfaguara que chega como candidato a todas as listas de romances obrigatórios sobre a dramática formação do Brasil. Um mar de histórias que escorre pelos sertões de fora e sertões de dentro.

Comovido, este romeiro do Cariri recomenda, com todos os vivas e salvas de fogos, a leitura deste épico do conterrâneo Ronaldo Correia de Brito. Sim, o “Rio Sangue” também banha o Caldeirão de Santa Cruz do Deserto.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.

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