Essa é uma história popular, de domínio público, que já passa de geração a geração no interior do Nordeste. Além da comunicação boca a boca, já virou cordel e folclore. Aqui transformo a mesma narrativa sertaneja em uma fábula política, para combinar melhor com os leitores dessa coluna.
Como digo no meu novo livro, “Cão mijando no caos”, aqui desvendamos um dos granes mistérios do mundo animal — na visão dos humanos.
E Deus convidou os cães para uma festa no céu. Cães de todas as partes do recém-criado universo. De todas as classes, cores e tamanhos. Do fiel pulguento que lambe a boca do bêbado do mercado público ao cãozinho liberal do sr. Adam Smith. Deus mata, mas não discrimina.
Na chegada ao paraíso, uma placa, além do possante alto-falante babélico, avisava em todas as línguas do mundo, inclusive em esperanto: nobre cachorrada, favor guardar o fiofó na chapelaria. Por ordem do asséptico todo-poderoso, nenhum cão, por mais asseado que fosse, poderia adentrar o recinto com o seu formiroide.
O chapeleiro de Alice cuidava em catalogar os anéis caninos conforme o pedigree, pregas de classe. Como não iriam precisar de fiofós na celebração com o Senhor, os cães, até mesmo aquele cachorrinho chato e mnemônico do velho Ulysses, acataram a ordem sem maiores choramingas. Partes pudendas guardadas, distribuídas as cortiças para vedar as catingas do eu-profundo-animal, começou, então, a grande farra.
Uma beleza, baile divino... Até que um cão selvagem (o melhor amigo do camarada Jack London) começou a cachorrada. Ao riscar da faca, um rebuliço de fazer Deus pequeno, anão e invisível. Como quem tem cu tem medo, os cães saíram em desabalada carreira, uma confusão dos infernos.
Naquela agonia toda, a chapelaria veio abaixo. Cada um pegou o fiofó que encontrou ali no chão, o furico possível, o boga imediato. O importante era não descer à Terra, o planeta azul como visto lá de cima, desprovido de retaguarda flatorial — como todo mundo sabe, sem um oiti uma criatura não é nada. Melhor um fiofó alheio, postiço, contra a vontade, do que viver sem o importantíssimo orifício rodosférico.
Moral da fábula, segundo a oralidade popular aqui humildemente resgatada: desde aquele dia, desde aquela bagunça divina no céu, quando um cachorro encontra outro (vira-lata ou elitista), a primeira coisa que faz é cheirar o rabo do semelhante. Uma eterna e paciente busca do próprio fiofó, uma procura que deve durar até o juízo final, século seculorum, amém.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.
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