Não demorou para que o novo decreto do Governo do Estado, que limita o funcionamento de uma série de serviços não essenciais a partir desta quarta-feira (3) em Fortaleza para tentar frear a disseminação do novo coronavírus, começasse a gerar repercussões políticas. Os argumentos voltam a se repetir, enquadrados no maniqueísmo já conhecido que coloca em polos opostos, erroneamente, saúde e economia.
A esta altura, em plena ascensão preocupante do número de casos de Covid-19 no Ceará, insistir em levar o debate público a este caminho é uma atitude limitada e infrutífera de muitos dos “representantes do povo”. O que aprendemos em quase um ano de crise sanitária?
Toda decisão, especialmente no contexto em que vivemos, é política. Colocar a saúde em primeiro lugar não desconsidera os impactos econômicos do decreto. Não se pode encarar a situação de forma simplória - se abro os olhos para um problema, os fecho para outro? Não!
Alimentar tal percepção, neste momento, tem uma serventia perigosa: reforça uma polarização que parece mais preocupada com capitais políticos (e eleitorais) individuais, enquanto fica em segundo plano qualquer discussão de fato produtiva sobre alternativas viáveis - à saúde e à economia.
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Desde o início da pandemia, o enfrentamento à Covid-19 fez das redes sociais de políticos palanques virtuais constantes. Nos discursos, alguns adotam o “vale-tudo” para arrancar aplausos das respectivas claques. Nos espaços de poder, em muitos exemplos, poucas contribuições efetivas. Narrativas em disputa fazem parte do jogo político, mas é imperioso que, diante da situação preocupante quanto ao novo coronavírus, toda decisão que se diga política seja uma decisão tomada, sobretudo, pela vida.
O Amazonas é logo ali
Não é preciso ir longe: no Amazonas, o governador Wilson Lima (PSC) chegou a decretar lockdown em dezembro de 2020, mas voltou atrás após pressões políticas. Vários parlamentares, dentre eles inúmeros bolsonaristas, comemoraram o “feito”. Chamaram a medida de “palhaçada”, exaltaram que o recuo mostrou “poder do povo”.
Dias depois, vivendo um colapso no sistema de saúde, que culminou na falta de oxigênio em Manaus, foi preciso adotar toque de recolher. O confronto político, colocado acima das recomendações de autoridades sanitárias, custou vidas.
No Ceará, a situação - ainda - é diferente: a secretária-executiva de Vigilância e Regulação da Secretaria Estadual de Saúde (Sesa), Magda Almeida, lembrou em entrevista na última terça-feira (2) que, até dezembro passado, a retomada gradual de atividades econômicas foi possível sem grandes impactos no crescimento de casos de Covid-19. Ressaltou que não está nos planos do Governo do Estado, até o momento, a adoção de um novo lockdown.
Que tipo de contribuição?
Os impactos negativos da recente limitação de funcionamento de diversos estabelecimentos, claro, devem ser considerados, mas não apenas agora, com o novo decreto. Os casos de descumprimento das medidas sanitárias impostas até então, por algumas empresas e cidadãos, contribuíram - dentre outros fatores - para que se chegasse a isso. Em muitos (maus) exemplos, faltou responsabilidade.
Reabrir com os devidos cuidados não garantiria que o endurecimento das restrições não voltasse a ser decretado, mas certamente tornaria a retomada de atividades econômicas menos arriscada.
De volta às repercussões políticas, é importante, sim, que o tema paute debates nos parlamentos, que vereadores, deputados, possam ouvir demandas de diferentes segmentos da sociedade civil e assumir papel de mediação com o Poder Executivo, em âmbito municipal e também estadual. Mais do que isso, que as reações - de aval ou crítica - ao novo decreto não se resumam à retórica.
Que saiam delas proposições, caminhos, contribuições para minimizar impactos econômicos e preservar vidas. O momento exige responsabilidade. Só ela, aliás, pode nos fazer voltar a uma situação de menos limitações mais rápido. Antes de transformar o decreto vigente em arena de embate político, é necessário olhar para a dolorosa lição de Manaus.