Tenho uma amiga de longa data, por quem nutro imenso carinho e admiração. Nossa história começou no teatro, no curso superior de Artes Cênicas do Instituto Federal do Ceará. Éramos de turmas diferentes, mas parecia até ser a mesma, pelo tanto que compartilhávamos nossas vivências pelos corredores do IFCE, pelos festivais, saguões de teatros e bares do Benfica, em Fortaleza.
Certo dia, decidi fazer a montagem de um espetáculo, onde convidei alguns atores e diretores renomados da cidade para me auxiliarem no processo criativo da peça. De absolutamente todos, recebi um sonoro “não”. Acabei produzindo, dirigindo e atuando sozinho este trabalho que, na primeira temporada, foi rejeitado pela classe artística e um grande fracasso de público.
Decidi, então, buscar ajuda novamente para refazer o espetáculo, mas dessa vez com artistas iniciantes do curso de Artes Cênicas. Ela foi a primeira a me dizer um “sim”. Mesmo que aquela empreitada parecesse preocupante, já que eu já tinha passado por uma rejeição inicial, mesmo sem saber se uma nova temporada daria certo, ela acreditou em nós.
No dia da nova estreia, entrei no camarim e lá estava ela, diante das luzes do espelho, finalizando sua maquiagem: impecável, linda e deslumbrante. Um lenço preto na cabeça, estilo anos 50, um sinal no canto da boca, um tecido preto que se transformava em um belo vestido envolvendo todo seu corpo esguio, um salto preto vinil e uma cigarrete, produzido por ela mesma com uma cartolina. Lembro de ver aquela cena e me sentir diante de uma diva do cinema, uma Audrey Hepburn, uma Betty Davis, uma Maryland Monroe, mas não era nenhuma dessas. Era Verónica Valenttino.
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Para a surpresa daqueles que não acreditam em nós, estreamos e foi um grande sucesso. Ficamos um bom tempo em cartaz com essa temporada. A partir dela, vieram outras artistas incríveis para agregar ao trabalho. Nos tornamos um grupo, um coletivo de teatro, uma família e um lugar seguro para estar.
Com o coletivo, viajamos por diversos lugares do Nordeste, fizemos inúmeras apresentações, nos divertimos em diversas cidades e provocamos um movimento de transformação no fazer teatral do Ceará. Não tenho dúvidas do papel fundamental que desempenhamos para a cultura e o movimento LGBTQIAP+.
Então, em 2012, decidimos realizar um novo espetáculo, dessa vez, com canto. Nós já sabíamos de toda a sua potência vocal. De repente, a jovem que, quando adolescente, cantava na igreja, passou a cantar também nos palcos da arte. Depois de aulas de canto e preparação de voz para a nova montagem, ganhamos de presente não só uma grande atriz, como também uma cantora espetacular.
Assim, ela também foi trilhando um caminho paralelo, desbravando outros mundo e conhecendo novos artistas para fazer nascer a banda Verónica Decide Morrer. Lembro perfeitamente de assistir um dos primeiros shows e ficar completamente encantado com tamanha força em cena.
O tempo passou, o território ficou pequeno e ela sentiu que precisava se arriscar por outros lugares. Migrou para São Paulo, passou perrengue, lutou, amadureceu e, de repente, a vi cantando Belchior. É provável que, até hoje, nenhuma garganta tenha me impressionado tanto ao interpretar as canções desse artista como em sua voz. Verónica não canta, ela te atravessa na alma.
Hoje, ela segue cada vez mais bela, cada vez mais gigante, cada vez mais admirável e está protagonizando um espetáculo importantíssimo: “Brenda Lee e o Palácio das Princesas”, em temporada no Teatro Núcleo Experimental, na Barra Funda, em São Paulo, até o dia 3 de julho, dirigido por Zé Henrique de Paula e com um elenco formado quase todo por pessoas trans.
Na peça, Verónica dá vida a Brenda Lee, uma das maiores militantes e ativistas do movimento LGBTQIAP+, nordestina arretada, considerada “anjo da guarda das travestis” e pioneira no acolhimento de pessoas com HIV no Brasil, no auge dos anos 80, onde a falta de informação e o pânico moral da sociedade conservadora estigmatizava e excluía de forma mais profunda a comunidade.
“Palácio das Princesas” era o apelido pelo qual a Casa de Apoio Brenda Lee era conhecida - um espaço fundado para acolher e prestar assistência médica, social e moral a quem convivia com HIV. Lá, ela também acolhia travestis que, assim como ela, também foram expulsas de casa. Brenda ficou conhecida pelo seu imenso carisma e simpatia com todos. Seu legado é eterno e Verónica a interpreta como ninguém.
Minha amiga é mesmo uma força da natureza, uma entidade em cena, beira a magia, o encantamento e, sem dúvidas, é uma das maiores artistas desse país. Verónica, que assim como a própria mãe, carrega o V de Valentia, merece ecoar cada vez mais a sua própria voz.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.