Vocês podem me ajudar a me situar? Tenho a impressão de que acordei em 2009. Por um momento, até achei que estava em 2023, mas deve ter sido só um sonho, um devaneio. Eu só posso ter acordado em 2009, porque só assim pra entender esse retorno do debate sobre a autenticidade de casamentos igualitários ou o que é, de fato, “entidade familiar”.
Pra você que também não está entendendo nada, vou resumir: 10 anos depois da conquista do casamento LGBTQIA+ no Brasil, deputados da ala conservadora querem revogar a decisão do STF e do Conselho Nacional de Justiça, afirmando que “nos termos constitucionais, nenhuma relação entre pessoas do mesmo sexo pode equiparar-se ao casamento ou entidade familiar”.
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Isso quer dizer que, caso aprovado, você, LGBTQIA+, que ainda não casou, não poderá mais casar, e quem casou, vai ter sua certidão de casamento anulada. Não, não importa que você esteja comemorando bodas de alguma coisa, não importa o quanto você gastou na sua festa, não importa que você casou para pôr seu parceiro ou parceira como dependente do plano de saúde, não importa o quanto se lutou por essa conquista. O seu casamento pode não valer mais nada.
Eu jamais imaginei que fosse preciso falar o óbvio novamente, mas vamos lá. Casamento civil, ou seja, aquele perante o Estado (que é laico) se trata de um negócio jurídico, solene e público, que estabelece vínculo jurídico entre duas pessoas, um contrato, nada tem a ver com religião.
Não tem ninguém exigindo que padre x ou pastor y celebre um casamento entre pessoas do mesmo sexo. Eu mesmo já celebrei um casamento de duas mulheres e foi uma das coisas mais lindas que já vivenciei. Essa não é uma questão para nós.
Uniões homoafetivas existem, ainda que não queiram ou não gostem, e anular esse direito é nos tirar humanidade. Se somos iguais perante a lei, o Estado precisa, sim, nos garantir igualdade, liberdade e dignidade, tal qual está na Constituição.
Não há motivos para se negar esse direito a casais homossexuais senão a força da intolerância e do preconceito. Quer ver? Na justificativa do projeto, os deputados-autores afirmam que “aprovar o casamento homossexual é negar a maneira pela qual todos os homens nascem neste mundo e atentar contra a existência da espécie humana”.
Eu não encontro outra palavra para definir essa justificativa que não seja BURRA, mas vou tentar explicar da maneira mais didática possível, quase desenhando: nascer não tem nada a ver com casar. Olha que surpresa! Quase 500 crianças são registradas sem pai POR DIA no Brasil, segundo o Portal da Transparência do Registro Civil. São mais 11 milhões de mães solo neste país - a maioria, de mulheres negras.
Em dez anos, mais de 76 mil pessoas LGBTQIA+ casaram em nosso país, ou seja, estabeleceram o tal do vínculo jurídico, o contrato. Adivinhem! Nenhuma criança deixou de nascer por causa disso, porque, vejam só que surpresa, se gays não pudessem casar, ainda seriam… gays.
Mesmo com casamentos homoafetivos, a espécie humana continua de vento em popa na lógica patriarcal: homens héteros procriando e não assumindo filhos. Nessa perspectiva, não há o que se preocupar com o fim da existência da espécie humana. Não será por falta de procriação. Provavelmente será pelo aquecimento global, mas isso é outra história.
O fato é que se formos pensar em “entidade familiar” de acordo com o modelo cristão, é preciso entender de que famílias estamos falando. Será a de Adão e Eva (héteros), que instituiu o pecado humano? Será que contempla os filhos Caim e Abel, onde um irmão matou o outro? Será a de Abraão (hétero) que quase mata o filho Isaque em nome de Deus? Ou será a de Davi, que tinha 8 esposas? Sem contar a de Salomão, que tinha mais de 700 esposas.
Que tipo de família se espera defender dos terríveis homossexuais? A quem interessa nos diminuir a uma condição de inferiores aos heterossexuais?
Não há argumentos.
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor