Meu São João foi tiktoquezado, e agora?

Com a plataforma de vídeos, é cada vez mais comum vermos vídeos que distorcem a verdadeira festa junina

Legenda: É preciso ter muito cuidado com as “modernizações” das tradições populares para não corrermos o risco de descaracterizar nosso patrimônio
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São João é coisa séria. Todo nordestino que se preze sabe bem o que o período junino representa. Está no DNA, em cada célula do corpo. É físico mesmo, quando chega essa época do ano, até o coração bate noutra frequência, parecido com o toque da zabumba, tudo se arrepia no primeiro puxar de fole do sanfoneiro.

Colorido como só o Nordeste, no São João, até o céu experimenta mais cores. Pode apostar, basta olhar pra cima que você vai ver aquele azul imenso ser rasgado por bandeirolas multicoloridas. Nada fica cafona ou over, porque é nessa mistura de tons que tudo fica mais bonito, tudo tem brilho.

São João no Nordeste tem até cheiro próprio, de milho. Cheiroso que só! Milho de tudo quanto é jeito: assado, cozido, feito canjica, pamonha, bolo, cuscuz, mungunzá, no creme de galinha dos pratim. É que é nesse período que boa parte da colheita do grão é feita, cultura e história alimentar de mesa farta.

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No meio da festança, entre a cachaça e o forró de corpo colado, tem também muita reza e muita crença, porque aqui o divino e o profano andam de mãos dadas em junho. A gente pede pra São João cuidar e proteger quem precisa, pede chuva e um sertão mais verde pra São Pedro e pede um amor bonito de viver pra Santo Antônio.

No Ceará, em Barbalha, tem até a Festa do Pau do santo casamenteiro. Reza a lenda que quem consegue pegar uma lasquinha do pau, arranja casamento. Ando até pensando que se nada der certo, vou apelar pra Antônio e vou de mala e cuia pra Barbalha no ano que vem.

As quadrilhas são o ponto alto pra mim. Sou apaixonado pelas coreografias, o casamento matuto e os figurinos. Cresci tendo esse “teatro de rua” como minha única referência de arte e cultura em Mombaça. Eu era uma criança que esperava ansiosamente pela chegada do São João só pra ver as quadrilhas.

Os festejos são tão gigantes por aqui no Nordeste que tem até disputa de qual estado faz o maior ou o melhor São João do Brasil. Tem quem diga que o maior é em Caruaru, no interior de Pernambuco. Outros que apontam Campina Grande, na Paraíba, como a terra junina. Aqui no Ceará a gente entra na briga com o tradicional São João do Maracanaú.

Nessa competição, todo mundo ganha. É difícil definir se há um maior ou melhor, porque cada lugar tem suas peculiaridades. Uma se destaca na programação mais regional e na resistência da música típica nordestina; outras cidades se destacam pelos quadrilhódromos repletos de uma explosão de cores, vestimentas, coreografias e competições e por aí vai.

Legenda: Reduzir tudo a nada? Ou melhor, reduzir a um chapéu de palha e uma camisa xadrez? Aí não! Já é demais pra mim
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Há ainda lugares com uma vasta programação de shows que transformam a festa em um verdadeiro festival. Eu adoro poder assistir os artistas que sou fã, mas há programações tão variadas que, para um bom apreciador de São João, é até ultrajante ouvir um pagode ou um eletrônico no lugar de Luiz Gonzaga ou de um clássico de Mastruz com Leite.

No TikTok, a coisa parece que desandou. Em junho, foram inúmeros os vídeos de quadrilhas, especialmente em escolas, com os “matutos” deixando de lado o jogo de dança dos pares, os passos do túnel, do serrote, da cobra, para fazer “passinhos de Tiktok”, com funks ou versões eletrônicas de forró. Meninos e meninas, homens e mulheres tiktoquezando nossa cultura.

Não me considero uma figura apegada a tradições e acredito que a cultura muda mesmo. Por essência, a cultura é mutável e o São João merece passar por reformulações que são necessárias. Atualizar discursos, músicas machistas, deixar de lado a homofobia, trazer novas roupagens, eleger novas rainhas e noivas que contemplem a beleza de nossa diversidade, como tem acontecido com a presença de mulheres trans em destaque.

Porém, reduzir tudo a nada? Ou melhor, reduzir a um chapéu de palha e uma camisa xadrez? Aí não! Já é demais pra mim. São João é o que temos de mais genuíno de nossas manifestações artístico-religiosas. É patrimônio imaterial e deve ser cuidado, admirado, celebrado e preservado.

É preciso ter muito cuidado com as “modernizações” das tradições populares, para não corrermos o risco de descaracterizar nosso patrimônio e construir, para novas gerações, festejos juninos que não sejam, de fato, condizentes com nossas origens, com nossas raízes.

A sanfona, o triângulo, a zabumba, o forró, o casamento matuto, a quadrilha, as bandeirolas, a fogueira, o milho e as brincadeiras são, e devem, ser perpetuados. São João tem seus protagonistas faz muito tempo.

 

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor

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