Fiz aniversário e comemorei com muito orgulho
Com 41 anos, celebro todos aqueles que lutaram para que eu pudesse festejar
Eu nasci em 1982, no sertão do Ceará. Nasci no meio de uma das secas mais longas da história do Nordeste, que durou sete anos. O auge dessa estiagem foi um ano antes da minha chegada. Meus pais lembram do rastro de miséria e fome. Então… Bom, esse não é bem um período em que se falava sobre direitos civis para pessoas “não heterossexuais” na minha cidade.
Dentro daquela realidade, nem se cogitava ou se ouvia falar nada sobre o assunto. A preocupação era se teria comida no prato, muito justo. O que também não quer dizer que não havia preconceito e discriminação. Isso sempre existiu. Diferente de nós, esses dois bichos peçonhentos eram sempre muito bem alimentados e nutridos.
Eu, que sempre fui uma criança viada, percebia e sentia o veneno que vinha junto aos apelidos de bichinha, paquita, mulherzinha. A forma como riam de mim na escola, os olhares na rua. Eu não sabia que ser desse jeito era considerado errado.
No último dia 20, completei 41 anos. Faço aniversário no mês do Orgulho LGBTQIAPN+ e entre vários amigos e familiares, lembrei de muita coisa que vivi ao longo dessas quatro décadas. Parei pra pensar que aquele menino-paquita se tornou um homem consciente e seguro de sua sexualidade e de seus direitos graças a muitas lutas bem longe de Mombaça.
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Quatro anos antes de eu nascer, em 1978, em meio a ditadura militar, grupos de gays, lésbicas e travestis começavam a se organizar em bares e clubes para reivindicar apoio, surgindo então o MHB - Movimento Homossexual Brasileiro. Sem dúvidas, um marco para a nossa história, mas um detalhe ínfimo para uma realidade de seca.
Em dezembro de 1979, aconteceu o 1º Encontro de Homossexuais Militantes do Brasil, no Rio de Janeiro - outro marco importante para mostrar que o grupo estava ganhando força. Uma das reivindicações era a inclusão de “respeito à opção sexual” na Constituição Federal, mas é como eu falei, isso pouco importava no sertão.
De 1982 a 1990, os ativistas LGBTs enfrentaram uma luta muito difícil. O Brasil passava por uma epidemia de HIV. Na época, os jornais noticiavam a AIDS como “peste gay”, o que nos causava ainda mais marginalidade e preconceito. Na contramão, organizações como o Triângulo Rosa e o Grupo Gay da Bahia faziam campanhas para que a homossexualidade fosse retirada do Conselho Federal de Medicina.
Pra se ter noção, somente em 1990, OMS retirou a homossexualidade da lista de distúrbios psiquiátricos. Eu tinha oito anos na época. Não era algo que eu sabia ou pensava a respeito, mas conseguia entender que havia alguma coisa de muito errada pela forma como me tratavam.
Quando eu tinha 15, já morava em Fortaleza e estudava no que atual IFCE. Foi justamente em 1997 que o Brasil recebeu a 1ª Parada do Orgulho LGBT, em São Paulo. As coisas pareciam mudar, mas apesar de não ser mais considerada uma doença psiquiátrica, nossa sociedade continuava gerando certos “tratamentos”. Só em 1999, o Conselho Federal de Psicologia proibiu práticas de “cura gay”.
Nunca senti que precisava ser curado e nem nunca passei por qualquer tratamento, mas era comum anúncios de “reversão sexual”, prometidos especialmente dentro de igrejas e consultórios. Vi muita gente buscar por vontade própria esse caminho por não aguentar mais o peso da homofobia.
Lá pelos meus 20 anos, me assumi homem gay, me entendi como uma pessoa homossexual. Lembro da sensação de nascer novamente quando isso aconteceu. Antes disso, eu nem sei. Viver dentro de um armário não é o que se possa chamar de vida. Então hoje, com 41, parece que finalmente estou com 20 anos, porque há 20 nasci pro mundo de forma irremediável e, definitivamente, incurável.
Fui casado durante 10 anos. Dividíamos casa, contas, cachorro, gato, amigos, trabalho, vida, tal qual qualquer casal, mas tudo dentro da informalidade. A união estável entre pessoas do mesmo sexo não era reconhecida no país. Somente em 2011, é que casais como eu e meu então companheiro passaram a ser reconhecidos como uma entidade familiar.
Não sei se todos lembram, mas os cartórios podiam se recusar a registrar as uniões nessa época. Isso mesmo que você leu. Somente dois anos depois é que o Conselho Nacional de Justiça passou a obrigar os cartórios a realizar casamentos civis entre pessoas homossexuais. Sim, há somente 10 anos é que conquistamos o poder de casar.
Em 2013/2014, já como um profissional da arte, comecei a rodar o Brasil com meus espetáculos de maneira mais contundente. O teatro já me levava a lugares inimagináveis. Me apresentei para artistas que são verdadeiras entidades pra mim, subi em palcos que são lugares sagrados. Em 2017, fiz a minha primeira novela, que me projetou nacionalmente.
Em 2019, outro sucesso, só que dessa vez no cinema, com Bacurau. Com 37 anos, vi a homofobia virar crime no Brasil - país com o maior índice de mortes de pessoas LGBTs do mundo. O que não garantiu nem a diminuição dessas mortes e nem a devida punição aos homofóbicos, mas que simboliza um avanço. Eu já era parado na rua chamado por Lunga.
Tudo parece que foi ontem. É tudo muito recente. As mudanças na sociedade, as conquistas de direitos civis, a representatividade na cultura e na política, tudo - TUDO - é muito recente. Dá pra sentir na pele, principalmente as transformações pessoais, de consciência.
No meu aniversário de 41 anos, eu reuni minha mãe, minha irmã, meus sobrinhos e meus amigos - tudo viado e sapatão - no mesmo ambiente. Foi um dia de festa. Tinha comida no prato, amor de todo lado, liberdade de ser quem se é e orgulho servido à vontade.
Tenho gostado cada vez mais de fazer aniversário, porque quanto mais o tempo passa, mais a sociedade se transforma, mais direitos se conquista, mais vida pela frente e aquele passado tenebroso vai ficando mais distante de mim, o da miséria e o do preconceito. Espero comemorar 42 com mais motivos para se festejar o Orgulho LGBTQIAP+ sob as bençãos de mainha.
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor