Barra do Ceará comemora 419 anos de história

Fortaleza merece conhecer a Barra do Ceará e sua história curiosa, intensa e complexa.

Legenda: O equipamento, fonte de controvérsias e polêmicas desde a sua construção, conseguiu l fazer a integração física entre o litoral de Fortaleza e o de Caucaia, antes separados pelo leito do Rio Ceará
Foto: FOTO: FABIANE DE PAULA

Nossa coluna semanal tem uma versão audiovisual na TV Diário e na Verdinha FM 92.5, somos um quadro do programa ‘Bom dia Nordeste’ comandado pela excelente Daniela Delavor e pelo inoxidável Tom Barros. Pois bem, conversando um dia sobre a cidade, Daniela me cobrou que falasse sobre a Barra do Ceará, ela havia ido ao bairro mais antigo da cidade ver o famoso por-do-sol e ficou “encantada”. O desejo de todo comunicador e propagar ideias e sentimentos, assim, provocado pelo encantamento venho homenagear o aniversário da decana de Fortaleza, a bela e longeva Barra.

O local que encantava povos Payacus e Potiguares entre outros, hoje é lugar de passeios de barco e passagem de carros rumo ao litoral oeste do estado. O morro de Santiago assiste impávido a transformação do lugar, da primeira caravela ao mais recente funk dançado pela juventude no calçadão. A água que ia até o morro hoje se choca contra pedras quebra-mar que servem de assento à plateia do maior espetáculo natural da cidade: O pôr-do-sol da Barra. 

O bairro comemora, nesta terça-feira (25), 419 anos de história o que torna mais que propício nossa homenagem em texto ao berço histórico do estado colonial do Siará Grande. Se você puder passeie de barco pelo Rio Ceará nessa comemoração, senão, ao menos navegue conosco por essa (nossa) história. 

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História, memória e identidade

Em 1603, quando portugueses começaram a luta pela conquista efetiva dessas terras foi na foz do rio Ceará que o Capitão-mor Pero Coelho tentou fixar o Fortim de São Tiago. O local estratégico, belíssimo e privilegiado em condições naturais e militares atraiu piratas franceses, conquistadores holandeses e foi palco de uma das mais resistentes pelejas indígenas do litoral. Na esquina do Atlântico Sul, fundamental à ocupação portuguesa, o navegável Rio Pirangi (Hoje Ceará) viu fortes e guerreiros se levantarem e tombarem para criar as bases da Capitania, mas o forte só conseguiu se fixar no pequeno riacho Pajeú. A Barra acabou relegada à periferia da ocupação do forte.

A região viveu uma intensa e desordenada ocupação marcada pela favelização. Indígenas expropriados, retirantes das secas indesejados, trabalhadores pobres e marginais de diversos modelos ocuparam morros e acessos à região. A Barra foi um polo industrial com beneficiamento de óleo, castanha e couro, ao redor das fábricas emergiram vilas operarias e conjuntos habitacionais marcados pelo abandono político e falta de investimento estrutural.

Nesse contexto meu avô Raimundo, como já contei anteriormente, vendia óleo e querosene para iluminar e abastecer as casas da região. De carroça e depois de Variante meu pai e avô percorreram toda essa região, muitas dessas ruas contam irresistíveis histórias familiares. 

Barra do Ceará antes de receber a Ponte sobre o Rio Ceará
Legenda: Barra do Ceará antes de receber a Ponte sobre o Rio Ceará
Foto: Arquivo Diário do Nordeste

Em 1973 foi construída a Avenida Leste-Oeste, que facilitou a conexão do bairro com o restante da cidade e contribuiu para conectar a região à lógica de uma Fortaleza em crescimento. Essa é a Barra da minha memória afetiva. Percorrer a ‘Leste’ indo visitar minha avó Mariinha, sentir o cheiro de castanha torrada saindo da chaminé das fábricas e atravessar de balsa o rio Ceará para tomar banho na barra.

Lembro de acompanhar as promessas e descrenças em torno da construção da ponte e sua inauguração em 1997, a Ponte José Martins Rodrigues, ou Ponte da Barra facilitou a ligação de Fortaleza com as populares praias do litoral Oeste, mas, acabou a travessia de balsas que eu tanto gostava. A bela obra mudou a lógica e o cenário do encontro Rio-Mar, trouxe impactos ambientais de longo prazo, mas, segue como marca da atual lógica de ocupação da orla. 

O acesso facilitado não trouxe democratização econômica e cultural capazes de atender as necessidades do segundo bairro mais populoso da capital. Mesmo com importantes equipamentos de esporte, lazer e cultura como a sede do time operário Ferroviário Atlético Clube - o tubarão da Barra –  o primeiro Centro Urbano de Cultura, Arte, Ciência e Esporte de Fortaleza, o CUCA, o restaurante Albertu’s, reconhecido como bem histórico-cultural tombado, as ações do poder público são pontuais e descontinuadas, ações aquém do que a região merece e precisa. 

A forte produção/ocupação desses equipamentos evidencia uma periferia sedenta de oportunidades e espaços. Aliás, uma periferia sedente de ser atendida pela cidade que muitas vezes lhe vira as costas mesmo diante de sua beleza deslumbrante, o bairro de alta densidade habitacional e baixa renda per-capita é um modelo perfeito das contradições de nossa bela e desigual cidade. 

Grandes intervenções e contradições

A Barra do Ceará é símbolo do que Fortaleza tem de melhor e de mais cruel. A criminalidade e as muitas violências que assolam a região marcam o bairro e sua população. A Barra está entre os bairros mais violentos da capital, com altos índices de homicídio, exploração e turismo sexual, prostituição infantil, tráfico e livre ação de facções. Durante a pandemia o bairro se destacou com a grande quantidade de vítimas da Covid-19, mostrando que morte e doença não igualam desigualdades. 

Os moradores da Barra sofrem com o preconceito, a desinformação e a estereotipação. Gargalos que atrapalham o desenvolvimento do turismo e dos serviços na região e impactam a economia local. Muitos fortalezenses conhecem a Barra pela violência e não pela beleza. Esse modelo precisa mudar, o poder público e a sociedade civil não podem mais virar as costas as necessidades de nossas periferias. Isso é além de tudo, um desperdício de potencial econômico.  

O longo processo de favelização e precarização das residências trouxe grande impacto ambiental. A ponte, os esgotos e as obras irregulares devastaram as dunas e as margens do Rio Ceará. Essa área precisa ser ambientalmente replanejada, seu grande potencial para a economia verde pode ser o mote para essa reconfiguração, além emprego e renda a exportação do cartão postal pode garantir saneamento, limpeza e sustentabilidade, é preciso uma engenharia e um urbanismo social e ambientalmente engajado, resultante de conversas e diálogos com a comunidade e suas tradições. 

É possível fazer dessa privilegiada região um belo corredor ambiental, integrando lazer, renda e cultura sustentável, privilegiando uma comunidade que resiste à muito mais de cinco séculos. A comunidade que nunca chamou sua Leste-Oeste por nome de ditador, que lutou contra desapropriações e pedágios, que resiste e existe em uma continuidade histórica de lutas que mesmo que não se entendam como tal se conectam na forma e nas causas. 

Se superarmos nossa aporofobia podemos reconfigurar nossas relações com a ocupação do rio que nos nomeia. Recuperar a Barra do Ceará passa por mais que estruturas e estradas, passa por mentalidades e olhares, precisa extravasar, sem extrair, a própria comunidade e atingir seu potencial sem descaracterizar os modos de viver locais. Pensar a periferia a partir da periferia em um novo pacto urbano. Mais uma vez me volto a importância do protagonismo das comunidades locais no reconhecimento e preservação de nosso patrimônio histórico como forma de mobilizar nossa sociedade. 

Na semana passada escrevi sobre a capela São Pedro, hoje um símbolo de resistência, um vestígio das comunidades do Mucuripe. Após esta coluna recebemos a notícia que as duas últimas casas da orla do Aterrinho da Praia de Iracema foram vendidas para dar lugar a um superprédio, A comunidade do Mucuripe à Beira Mar sucumbiu à especulação, tentou-se fazer o mesmo com a orla oeste, ainda há tempo de se combater projetos como esse. 

Quando convido Fortaleza a se apropriar da Barra é um convite à partilha. O Bairro que assistiu o início de nossa invasão pode nos ensinar como ocupar sem tomar, como apropriar sem expropriar, como habitar sem degradar. A Barra do Ceará é um convite para um novo fazer histórico, onde se iniciou nosso processo colonial podemos construir um caminho decolonial.

Conhecer a Praia da Barra, tomar banho na água salobra da foz do Ceará, conhecer o CUCA, torcer pelo Ferrão, conhecer nosso marco zero na Praça de Santiago, passear nos barcos pelo rio-mar ou simplesmente sentar nas pedras e ver o Por do Sol. Fortaleza merece conhecer a Barra do Ceará e sua história curiosa, intensa e complexa. Esse conhecimento e apropriação são as únicas formas de evitar que especulações imobiliárias e empreendimentos megalomaníacos reconfiguram e desfigurem essa incrível paisagem. 

Na barra do rio, sob o canto da Jandaia, Fortaleza, a loira desposada do sol se deita e namora seu esposo. Então que essa paixão inflame nossa gente, nos enamoremos pela Barra, combatamos juntos suas mazelas, cobremos políticas efetivas e não pontuais para suas carências e paremos de falar em revitalização, pois, na Barra do Ceará nunca faltou vida, nem vivacidade, nem vontade de resistir. Na ponta onde o sol se deita e beija sua loira companheira nossa cidade deve escolher se retribui esse amor ou rechaça toda a sua beleza. 

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