Desejar sem desmerecer

Legenda: Já desejei ter uma cadeirinha no carro. A cadeirinha que significaria um filho
Foto: Africa Studio/ Shutterstock

Hoje fui numa concessionária fazer um trabalho e olhei o carro que tenho muita vontade de ter. Só olhei. Lindo, grandão, pareceu perfeito. Pareceu nem ter mais graça o que eu tenho. Hoje, olhando o quarto que já foi um sonho, falta um novo papel de parede. Ainda falta muita coisa. Esse olhar pro futuro sempre nos dá impressão que falta.

Falta a casa com grama. Falta ainda algum filho. Falta chegar ao auge da profissão que às vezes parece tão distante ou está mesmo. Falta a geladeira duas portas. Falta o carro maior. Falta a reforma. Falta a pessoa dos sonhos. Falta. Sempre falta. Do lugar que estamos, vivemos um lugar que ainda viveremos.

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Hoje, no mesmo carro que parece não me caber mais, estava a cadeirinha da Manuela. A cadeirinha que sempre sonhei ter no carro. Uma cadeirinha lá significaria um filho.

São alguns anos treinando o olhar para o que eu tenho. Para o que eu desejei e já tenho. Sem demagogias, sem frases feitas. Por satisfação pessoal, por não me achar incapaz do que ainda não tenho, por não me achar apenas uma fábrica de desejos, por viver e estar em um lugar, aqui dentro, que foi desejado. Pra que eu ame esse lugar. E nem estou falando da casa, do apartamento. Tô falando dessa moradia interna, a mente, que sempre nos faz desejar tanto que esquecemos de recuar um pouquinho o olhar e ver o que já temos.

Temo viver na fábrica dos desejos infinitos, tão lindos e atraentes que me faça esquecer onde moro. Nesse lugar onde já foi um dia, meu quintal vazio que enchi de desejos, mas não é mais suficiente.

A cadeirinha do carro, a mesa do escritório que um dia foi da sala de um apartamento maior, a sala de brinquedos, o trabalho de casa, a filha. Um dia tantos os quis. Que desse lugar, sempre mudando mas lembrando dele, meus novos desejos me movam. Um lugar entre os dois. Numa espécie de agradecimento e vontade de realizar mais.

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora