Três adolescentes baleados: as camadas ocultas de uma tragédia

Legenda: A equação do horror é mais complexa do que nossos olhos podem ver
Foto: Arte: Lincoln De Souza

Três adolescentes baleados. O suspeito de ter atirado contra os colegas, também adolescente. Diagnósticos rápidos e análises repletas de certezas se espalharam rapidamente. Diante do horror que não conseguimos processar, buscamos “o” culpado, “o” motivo que explique tudo: “se não fosse por isso, não teria acontecido”, entretanto, não percebemos como esta busca é simplista.

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Sim, o adolescente alega ter sofrido bullying. Sim, ficamos sabendo. Sim, a licença de uso e porte da arma foi concedida via Concessão de Colecionador, Atirador Desportivo e Caçador (CAC), uma lacuna legislativa e fiscalizatória que vem proliferando a venda de armas pelo país. Sim, ficamos sabendo. Sim, a arma está registrada em nome de um colecionador, e não pelo pai do adolescente, o que nos sugere ter sido vendida ilegalmente. Sim, também ficamos sabendo disso. Porém, o que ignoramos, com insistência, são as várias camadas entrelaçadas e indissociáveis no mesmo episódio e a equação humana que existe entre elas.

Uma metáfora adequada, para aqui utilizarmos, é a da matrioska, aquelas bonequinhas russas que se encaixam uma dentro da outra. Sempre que levantamos uma, outra, mais profunda, aparece, e assim sucessivamente.

A origem da arma foi, rapidamente, difundida em mídias sociais. Reduzir quatro vidas que, ainda que sobrevivam, guardarão cicatrizes indeléveis (sim, o suspeito também curvou o destino à sua frente), não me parece genuína preocupação, mas oportunismo, a arte de fazer da tragédia alheia o próprio palanque. Embora seja inegável que esta variável conste na equação do horror, atribuir como “o motivo” unicamente a política armamentista parece não ser a solução. Ao abrirmos essa boneca, encontramos outra, mais profunda.

Quatro adolescentes, vidas interrompidas. No momento que escrevo, um deles encontra-se entubado em estado grave. Como deve ser sofrer uma brutalidade e ler que “o motivo” foi bullying? Esta noite se culparam? Atribuem a si a responsabilidade do que sofreram? Entraram no labirinto infindo da ditadura do “e se”? “E se eu nunca tivesse falado nada dele?” Irão se perdoar por terem sido baleados? Não sei, isto não parece importar ao grande público.

Atribuir “o motivo” ao bullying parece não ser a solução, mas é inegável que esta variável deva ser somada à equação. Mais uma bonequinha é aberta, dentro dela, resta outra.

É preciso lembrar que a pessoa que pratica bullying, via de regra, possui uma plateia, é validada, nem que seja pela atenção recebida por seu ato. “Acabar” com bullying implica entender as motivações de quem o pratica, o aplauso de quem o assiste, a dor de quem o sofre e o silêncio das instituições. Exige uma reconfiguração das políticas educacionais – a elaboração de um plano anti-bullying nas escolas subtende um esforço orquestrado pelos poderes executivo, legislativo, por uma equipe multidisciplinar (professores, pedagogos, psicólogos etc) e, inclusive, pelas famílias. Mais uma bonequinha russa emergindo das estranhas de outra - parece não ter fim.

Existe a possibilidade de o adoleescente que atirou possuir algum transtorno mental? Sim, assim como mais de um bilhão de pessoas no mundo, das quais 14% são adolescentes (dados da Organização Mundial de Saúde). Contudo, atribuir “o motivo” unicamente a um suposto transtorno mental parece não ser a solução – não é o simples fato de tê-lo que transformará alguém em um assassino em potencial, inclusive, esta atitude aumenta o preconceito contra aqueles que estão em intenso sofrimento psíquico. Entretanto, é inegável que esta variável também deva ser somada à equação. Abrimos mais essa matrioska, e, incrivelmente, ainda outra aparece.

Quatro mães viram hoje a vida de seus filhos serem interrompidas – se não em corpo físico, simbolicamente. As mães das vítimas merecem toda solidariedade, sentimos muito. Mas daqui também me questiono: como se sente a mãe de um adolescente que tentou assassinar três pessoas? Como os vizinhos a olham? Ela poderá sair de casa para comprar pão ou para sempre será estigmatizada pelo ato do filho? Ele tem mãe? Essa variável não vai ser somada à equação? Inesperadamente, a matrioska parece não ter fim.

O pai do adolescente suspeito do ato infracional, ao que consta, possui passagens na polícia por furto. Então, daqui, me questiono: se esse pai tivesse nascido herdeiro, se tivesse um trabalho bem remunerado, isso teria acontecido? Esta variável não vai ser somada à equação? Não sei, isto não parece importar ao grande público.

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Os diagnósticos rápidos e as análises repletas de certezas que rapidamente se espalharam, parecem ignorar que a cada camada retirada, outra surge. Existem incontáveis variáveis que se somam – o bullying, os determinantes sociais, a saúde mental do jovem que atirou contra os colegas e de seus familiares, as políticas educacionais, a conscientização das famílias, a facilitação das licenças para porte de armas, a segurança da escola, etc – de modo que é preciso bem mais do que apontar um culpado para que futuros casos não ocorram.

Esta equação do horror é mais complexa do que nossos olhos podem ver. Tentar encontrar “o” motivo, “a” causa, ignorando a complexidade deste lamentável episódio, no máximo, contribui com oportunistas que dominam a arte de fazer da tragédia alheia o próprio palanque.

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora

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