Regravação de “Meu Guri” reafirma a relação imortal de Elza Soares e Chico Buarque

Novo single lançado postumamente, reforça a grandiosidade da sambista e de uma amizade que transcende o profissional

Legenda: Elza Soares tem sofrimento ecoado em single póstumo "Meu Guri"
Foto: Reprodução/instagram

No início deste ano perdemos a grande Elza Soares. Na verdade, convivemos agora com sua ausência física já que sua voz seguirá ecoando as dores de um Brasil esquecido pelas elites e que precisa reviver cada vez mais. A carioca sempre será sinônimo de luta e seu vasto legado será a prova visível de sua imortalidade.

Dois dias antes de morrer, Elza gravou no Salão Nobre do Teatro Municipal de São Paulo um material audiovisual que teve sua primeira parte lançada na última sexta-feira (22) nas plataformas digitais. O trabalho fonográfico é um genial single de “Meu Guri”, canção que ganhou a identidade da artista há exatos 25 anos no álbum “Trajetória”. 

A canção que tem autoria de Chico Buarque de Hollanda casou perfeitamente com a trajetória sofrida da cantora e sua interpretação virou antológica na memória afetiva do nosso país. O amor daquela mãe que brilha os olhos diante de sua cria, independente de erros e acertos, em sua voz traz a dor  mensurável de quem se despediu de quatro filhos na vida.

A nova versão do single ganhou acompanhamento sofisticado do piano de Fábio Leandro. Ela mostra a tortura daquela mulher que começou cantar profissionalmente para pagar o medicamento de um dos seus rebentos e conheceu bem o “planeta fome”. Muitos foram os caminhos que ela adentrou, ainda assim nunca perdeu a fé na vida.

Legenda: Capa da regravação de "Meu Guri" (2022)
Foto: Reprodução

O interessante do single ser o primeiro trabalho de Elza lançado postumamente é que , além da carga emocional, “Meu Guri” reafirmou uma dos mais importantes laços da cantora: a amizade com o já mencionado compositor Chico Buarque. A música foi feita em 1981 e lançada no álbum “Cristina”, meses antes de sair também no disco do próprio compositor em “Almanaque”.

Incrivelmente foi redescoberto pela sambista em 1997 e a junção foi perfeita. A canção só fortaleceu um elo entre Elza e Chico que transcende o profissional. A frase “ninguém solta a mão de ninguém” já parecia fazer sentido na vida dos dois há muito tempo e isso vem cada vez mais à tona em filmes, documentários, séries e, claro, muita música.

Música, série e livro...

Pouco depois do falecimento de Elza Soares, a Globoplay lançou uma série documental de quatro episódios contando uma das maiores e mais polêmicas histórias de amor que o Brasil assistiu: da cantora com o jogador de futebol Mané Garrincha. Os dois viveram um romance de altos e baixos por vários motivos.

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Dentre a presença de muitos depoimentos que compõem o documentário, a bem humorada entrevista de Chico Buarque também conta seu olhar atento diante a “voz do milênio”. É nesse relato do compositor que podemos imaginar um outro momento delicado na vida de Elza, quando teve a casa metralhada no período do Regime Militar e foi obrigada a sair do país.

Em um auto exílio necessário, afinal se não saísse do Brasil poderia ser morta junto com os seus, a “mulher do fim do mundo” foi morar na Itália e lá encontrou o casal “Chico e Marieta”, que haviam se despedido de nossa pátria pelo mesmo motivo. 

O autor de “A banda”, brinca na série e fala sobre seu fascínio por Mané Garrincha, que na época já não erguia mais o desempenho em campo de outrora. Ainda assim, era seu ídolo no futebol e achava fantástica aquela convivência. É nesse momento também que ele lembra a chegada de Elza na Europa e logo substituindo ninguém menos que Ella Fitzgerald em um espetáculo, já que a americana teria de ser submetida à uma cirurgia de catarata.

O carinho da sambista é tão grande pelo compositor, que ela ousava até a falar que Chico Buarque era um de seus “cantores” preferidos, mesmo que este não tenha a extensão vocal, mas o tom que ele consegue adentrar nas letras a emocionava e isso vindo de uma das mais brilhantes artistas do nosso país, engrandece até Chico Buarque, se é que ele pode ser maior do que já é. 

“Me deixem cantar!”

Chico Buarque de Hollanda, na minha visão, é o melhor compositor brasileiro de todos os tempos e sua inteligência é tanta que compôs músicas que reviveram grandes artistas de carreiras enfraquecidas com o tempo. Exemplo disso é “Gente Humilde” que alavancou a vida de Ângela Maria ou “Bastidores” que levou a voz de Cauby Peixoto novamente para as paradas de sucesso.

Ainda que essa parceria junto com Elza tenha sido registrada em outras canções, mas nada vai ser uma prova tão grande desse encontro quanto o “Meu Guri” que parece ganhar guarda compartilhada de uma coautoria entre os dois: um que genialmente a escreveu e outra que magistralmente a interpretou.

Vale a pena ouvir o single e se debruçar na voz de uma divindade eterna. Elza é o Brasil que precisa renascer das cinzas e dar a volta por cima. Ainda temos mundo o que aprender com a artista e seu canto nos ensinará com certeza.

 


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