Há mais ou menos quatro meses eu comecei a fazer psicanálise, daquelas freudianas, no qual o paciente fica deitado dando as costas para o profissional e relata ali suas tempestades emocionais. O que mais me chamou atenção nesse processo, já que o sentido da terapia é “se ouvir”, foi a utilização de trechos da literatura para tentar traduzir meus pensamentos mais profundos.
Nos meus devaneios, menciono muito o poeta Vinicius de Moraes, a magnífica Cecília Meireles e até o obsceno Charles Bukowski. Na música, arte que me move diariamente, também sigo tomando trechos de canções para definir o que se passa no meu coração. E não poderia ser diferente, o compositor mais presente nas minhas catarses é o nosso “Rapaz Latino Americano”, o eterno Belchior, que se vivo fosse completaria hoje 75 anos.
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A relação do sobralense com esse turbilhão de sensações nos quais só sinto a liberdade de falar no divã, me fez analisar suas letras de outras formas e entender o motivo da sua atemporalidade diante de gerações. Ouvir Belchior é muito mais profundo do que um encontro casual e posso provar isso.
O olhar que mescla som e fúria, faz vir à tona um íntimo de muitos sentimentos não aceitos ou até escondidos pelas pessoas no cotidiano banal.
Somos todos cidadãos comuns, e o compositor decifra isso de uma forma libertadora. Suas canções entram em empatia instantânea com o público por descrever o que muitas vezes não sabemos explicar.
Mesmo surgindo oficialmente como artista na década de 1970, Antônio Carlos Belchior, ex-seminarista e quase médico, ao alçar seus altos vôos na música não bebeu do Tropicalismo, comum entre seus contemporâneos, e criou um estilo muito distinto para a sua obra.
Temáticas como “medo”, “angústia”, “solidão” e a “morte” estão presentes nas suas composições mas sem carregar um peso mórbido. De forma genial, o cantor costura tais sensações dentro da vida de todas as pessoas, independente de outros fatores.
São pensamentos tão duros, mas importantes de serem ditos, que suas frases agora seguem estampadas em camisas, quadros, slogans e até anúncios. Na verdade, “Bel” não quer o que cabeça pensa e sim o que a alma deseja e isso pode ser tão questionador, que muitos resolvem nadar nessa onda.
Suas referências são muitas e valiosas, o que torna ainda mais rica, sensorialmente falando, suas ideias musicalizadas. Dante Alighieri é uma dessas inspirações, o poeta nascido em Florença no século XII, também mesclou os pavores humanos ao falar na sua “Divina Comédia Humana” sobre os tão temidos “inferno” e “purgatório”.
O autor vasculhou a essência do homem dentro da sua vastidão de temores diante a morte. Misturando estudos teológicos e da própria filosofia, fazendo de sua literatura um marco para o mundo. Foi dentro dessas outras (auto)questões que Belchior se inspirou para fazer várias de suas letras. Dante Alighieri fascinava tanto o sobralense, que em uma de suas últimas entrevistas, o compositor confessou que estava fazendo uma releitura das obras do poeta.
Outra nítida inspiração para Belchior foi o escritor estadunidense Edgar Allan Poe, principalmente por meio de sua célebre obra, “O Corvo”, no qual o nosso compositor invocou o “BlackBird” em Velha Roupa Colorida, gravada pela pimentinha Elis Regina no seu álbum Falso Brilhante (1976).
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A inteligência do cearense é tanta, que em uma jogada de mestre, ainda na composição, ele compara Beatles à Luiz Gonzaga, e afirma que aqui nós temos nosso Assum Preto que gorjeia: passado nunca mais!
Aliás, “os meninos de Liverpool”, são mencionados em outras tantas músicas do artista. Dentre elas, cito o "Comentário a respeito de John" que torna brasileiro o inesquecível John Lennon ao chamá-lo de “João” e afirmar que “o tempo andou mexendo com a gente sim”.
João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade, José de Alencar, Bob Dylan e outros nomes foram embalados na alucinação de Belchior, o que mostra a grandeza de seu “Coração Selvagem” repleto de pressa de viver. O cantor incorporou o Brasil e seus fantasmas escondidos em porões de memórias.
Escrever sobre Belchior é sempre um desafio, principalmente na data que celebra seu 75º aniversário. Ele se foi em 2017, mas com essa sua última e talvez maior andança, mostrou que “punhais de amor traídos, completaram seu destino" e se fez eterno no imaginário de tantos fãs pelo mundo afora.
Sem qualquer medo de errar, afirmo que sua imagem é a de maior importância dentro do leque musical cearense. Sua identificação com o público é enorme e ouso dizer libertário. Até quando resolveu se auto exilar de sua carreira, o sobralense fez o que muitos de nós queríamos fazer: jogar tudo para cima e aprender de que lado nasce o sol.
São 75 anos de sonho, sangue e América do Sul! Belchior segue estampado pelos muros do país e invoca uma revolução individual em corpos e mentes. Seu nome faz crer que nas artes, diferentemente do mundo, as pessoas não são substituíveis e vidas não são postas em vão pois permanecem tendo sentido mesmo após do fim.
O tempo pode ter passado, as velas do Mucuripe até estão diferentes, mas a música segue viva em peitos desertos. Os galos, noites e quintais permanecem na memória do cearense, repleta de medo da morte ou do avião.
É Belchior, hoje só resta a saudade do verde marinho, mas sigo cantando muito mais sem esquecer que sou pessoa e conheço o meu lugar! Obrigado, poeta!
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.